Jussara Lucena, escritora

Textos

A Matriz

A cidade está em festa. Vai ser lançada a pedra fundamental da nova igreja. Ela será linda, grandiosa, como diz a Gazeta. Acho que os padres e os políticos estão acreditando que este pedacinho de terra um dia vai ser grande. A calmaria que hoje aparenta não traduz o que até pouco tempo acontecia: não faz um ano estávamos brigando pelas divisas, ou matando-nos uns aos outros sem saber ao certo por quê.

Lá do outro lado do mundo ainda há uma guerra, batalhas maiores, que também dividem as pessoas e cujas conseqüências são sentidas aqui. Os imigrantes alemães, italianos, poloneses e ucranianos afastaram-se uns dos outros e vivem isolados em suas colônias. Tenho um vizinho russo que ainda não consegui ver, de tão isolado que ele vive. Dizem que os americanos querem tomar conta do mundo, na Europa fornecem armas e aqui há o tal de Percival Farquhar que constrói ferrovias e leva embora nossa madeira, protegido pelos pistoleiros da Lumber. Dizem que lá em Três Barras só se fala inglês e tremula a bandeira dos Estados Unidos. Será que os governadores do Paraná e Santa Catarina não se importam com isso?

Mas hoje, pelo menos na hora da missa, penso que todos estarão juntos. Temos esperança que Deus possa nos unir um pouco mais e que a nova igreja seja um marco nas nossas vidas, não apenas um monumento para demonstração de força política e sim como um local de exaltação da fé.
Lembro que há cinco anos participei da inauguração da nova ponte da estrada de ferro, que substituiu a ponte de madeira levada pela enchente. Havia muita gente lá também. Foi no mesmo ano que a nossa União da Vitória virou capital do Estado das Missões e depois voltou a ser só mais uma cidade no meio de tanta araucária.

Houve um foguetório quando o trem cruzou a ponte, apitando, cuspindo fumaça e fazendo tremer os dormentes e as águas do Iguaçu. O progresso prometido pelos políticos ainda não ajudou o povo daqui, que ainda está à míngua e rezando para o Monge à espera de um milagre.

Foi no dia do meu aniversário. Meu pai me dizia que era o melhor presente que alguém podia ganhar. Ele só não sabia que muita gente tinha morrido em nome desse progresso.

Eu sonhava em um dia me tornar um maquinista e guiar aquela locomotiva até o Rio Grande do Sul, logo que o trilho seguisse em frente. Esqueci do meu sonho e só agora a ferrovia chegou a Santa Maria. Quem sabe não faço uma viagem até lá. Já pensou comprar uma passagem e viajar no vagão da primeira classe!

Meu avô me contava, enquanto o trem estremecia nossos pensamentos, que quando ele era jovem, os bois é que atravessavam o Iguaçu já há mais de 100 anos, no vau que foi descoberto poucos metros abaixo do lugar onde, em 1912, passava o trem em frente a população atenta. Não era esse pouquinho de gado que passa agora, dizia ele.

Quando não existia o trem, a boiada parecia não ter fim e preencher todo o Caminho de Viamão. Também havia muita mula transportando sal de Antonina até os campos de Palmas. Dizia que o sonho dele era seguir a tropa e conhecer Sorocaba. O avô do Beronha conseguiu fazer o percurso e disse ter cruzado muitas vezes com o Monge.

Esse tal Monge devia ser mesmo um santo. Já era velhinho há cinqüenta anos e contam que só morreu no ano passado na batalha do Campo de Irani. Ou será que eram várias pessoas? Uns dizem que o nome dele era João Maria, outros o chamavam de José Maria. Tem muitas cruzes por aí que dizem que foi ele quem fincou. Eu, o Beronha e a turma sempre bebemos da água dos pocinhos que dizem foi o Monge quem abençoou.

O Beronha é meu amigo de infância. Passamos muitas tardes nadando nas águas do Rio Vermelho, após atravessar o Iguaçu a nado ou remando um bote que nós mesmos construímos. Armávamos arapucas para pegar passarinhos, pescávamos com as redes e espinheis que nós mesmos fazíamos.

Nesse mundo de pinheiros escolhemos um que era a nossa referência, o ponto de encontro da turma. Ainda me lembro dos dias de outono em que catávamos pinhão da grande árvore e os sapecávamos numa fogueira feita com grimpas do próprio pinheiro, ali mesmo. Nos arredores podíamos comer guavirova, ariticum ou butiá. Escolhemos bem o lugar, era especial, tanto que lá erguerão a igreja.

Lembraremos que ali embaixo, onde construirão o altar, escondemos as coisas que mais gostávamos. Lá, vão ficar para sempre as minhas bolinhas de gude que eu mesmo fiz com o barro do terreno do meu avô, a cetra do Beronha e as coisas da piazada. Aqui é quase tudo banhado, vai ser preciso muito pinheiro para a fundação da igreja. As principais construções ficaram do lado de Porto União. O governo do Paraná quer novas construções, agora desse lado dos trilhos. Uma delas será uma escola, pertinho da igreja.

Ontem eu estava na bodega do Seu Kindermann e encontrei um dos garotos da turma. O Polaco fugia de casa para brincar com a gente, já que seus pais não queriam que ele se misturasse com os brasileiros. O Polaco hoje é construtor e junto com outras pessoas vai erguer a igreja nova. Dizem que ele, apesar de jovem e pouco instruído, põe muito engenheiro no bolso. O avô dele construiu muitas casas e não usava pregos, apenas fazia encaixes. Depois de prontas ficavam tão resistentes quanto as construções da cidade grande, diziam. As casas que constroem são pontiagudas.

Dizem que o lugar de onde eles vieram, a Europa, era uma terra muito mais fria que a nossa e que os telhados eram feitos assim para que a neve não se acumulasse em cima das casas. Eram bem diferentes das casas que tínhamos por aqui, construídas quase sem beiral.

Ele era uma pessoa diferente, muito habilidoso, construía seus próprios brinquedos. Fez até um violino incrível, e usava como cordas os pelos do rabo de um cavalo. A criatividade dele surpreendia. O pai do Polaco dizia para ele que no futuro as casas seriam bem diferentes, ficariam umas sobre as outras, como caixas de fósforo empilhadas.

O Polaco, que falava trocando os artigos masculinos por femininos e tropeçava nos erres, estava incomodado com a história de uma Irmandade que estava se preparando para atacar as estações de trem e as serrarias. Diziam que a profecia do Monge estava se realizando que os gafanhotos, ou melhor, os americanos estavam dizimando as florestas, como previa o João Maria. Eles que faziam parte do exército de São Sebastião tinham que trazer de volta a Monarquia para que as coisas voltassem a ser como antes.

Parecia tudo muito maluco, pois a estrada de ferro já tinha chegado aqui em 1905 e desde aquela época os gringos já cortavam madeira e carregavam muitos e muitos comboios que mandavam para outros países.

Ele estava preocupado porque os bandos também perseguiam os colonos europeus, pois estes ocupavam a terra que fora de seus antepassados e agora foram confiscadas pelo governo. Chamavam suas terras de devolutas e a lei as entregou para os estrangeiros. Esqueciam que na realidade a terra era dos bugres, que hoje quase nem existem mais. Os que restaram estão embrenhados nas matas mais distantes.

Encostado no balcão e bebendo um copo de cachaça, um dos funcionários da ferrovia contava histórias dos fantasmas que os maquinistas encontravam nas estações, próximos das caixas d’água onde paravam para abastecer as locomotivas.

Dizia que eram os espíritos dos jagunços mortos pelos vaqueanos que vagavam por lá, clamando pelas terras que lhes foram tomadas, diziam que os tais fantasmas escondiam-se nos ocos das velhas imbuias que tinham resistido à devastação do pessoal da Lumber. Havia uma história para cada uma das muitas curvas da ferrovia que parecia serpentear, imitando as curvas do Iguaçu e do Rio do Peixe.

Fiquei pensando na briga entre os bandos, que representavam o bem e o mal. Mas afinal quem era do bem? Acho que nenhum deles, porém, muitos inocentes devem ter morrido sem compreender o que realmente acontecia. O tempo vai se encarregar, como sempre, de mostrar a verdade.

A praça da futura matriz está ficando movimentada. Já estamos nos aproximando das três horas da tarde.

Aproveito para dar uma última lustrada no sapato. Minha mãe diz que se conhece o capricho de um moço pelos sapatos que calça. Hoje é domingo, calcei os meus. A Lucinha já deve estar quase chegando com a sua família, naquela charrete verde, puxada por uma bela égua malhada, de crina escovada e cascos limpos e bem ferrados. Ela tem uma vida confortável, propiciada pelo comércio de erva-mate que seu pai instalou e que ganhou força com a ferrovia e com a navegação do rio. Emprestei o boné do meu primo, pedi para a vovó passar bem a minha camisa que a mamãe alvejou com muito carinho. Quis ficar bem apresentável. Nesta semana consegui um emprego no moinho, que fica aqui pertinho da praça. Quem sabe daqui a alguns anos eu não caso com a Lucinha nesta bela igreja que será erguida, dizem que vai levar alguns anos até ficar pronta.

Lá vem ela, cabelos longos, rosto corado. O pai dela não nega a origem italiana e esbraveja com os meninos que correm na rua atrapalhando as charretes. O sol que hoje surgiu cedo torna ainda mais bonita a cena e aquece esta tarde de outono. Já anunciaram a chegada do Bispo que veio de Curitiba. Já vejo ao longe a figura do padre que conversa com o prefeito. Muitos os seguem agitados com o evento. Os sinos da capela em Porto União tocam para anunciar a missa campal. O céu agora está mais azul. Uma revoada de pássaros parece sinalizar algo, quem sabe melhores dias para todos nós. Espero contar boas histórias para os meus netos, quem sabe a borda do vapor Cruzeiro ou numa das cabines do trem, cortando a serra do mar. Mas até lá ainda tem muita água para passar por debaixo da ponte de arcos.

A cerimônia acabou. A praça voltou a ficar vazia. Um ventinho gelado começa a soprar, tenho uma boa caminhada pela frente. Acho que hoje vou pelos dormentes da estrada de ferro, assim vou me concentrar na lembrança do rosto da Lucinha, do seu sorriso que ilumina os meus pensamentos, que guia o meu caminho.

Texto finalista do XII Concurso de Contos da Fundação Petrobras de Seguridade – PETROS Publicado em antologia – dez/2012

Adnelson Campos
24/02/2015

 

 

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