Textos
O mago do futuro
Thomaz seguia pela Main St, deixando Downtown. Houston parecia mais silenciosa hoje, os veÃculos dominavam a paisagem. O mundo mudou muito nesses primeiros cinquenta anos do século XXI. A população mundial está em declÃnio, impactada pelas doenças mentais. A sÃndrome do pânico alastrou-se, se tornou mortal e é conhecida apenas como A SÃndrome. Homens e mulheres estão mais distantes, a reprodução humana passou a ser predominantemente assistida e alguns cientistas aproveitam isto para realizar seus experimentos, modificando geneticamente os seres humanos. A antiga ideia de purificação de uma raça foi resgatada com a possibilidade de manipulação do DNA e os “puros” e seus criadores detém o poder.
O mundo de cristais e componentes eletrônicos comanda a vida das pessoas que são identificadas através de leitores de perfil de DNA e tem cada passo monitorado em qualquer parte do globo terrestre. Assim os indivÃduos procuram isolar-se ao máximo. Os feiticeiros modernos são aqueles que conseguem proezas tecnológicas como o tele transporte de alguns materiais, a leitura e o controle de mentes, o uso compacto da energia atômica, o controle do hidrogênio como fonte de energiaou a sintetização de alimentos. Há quem diga que alguns conseguem recriar a vida de animais e até de seres humanos.
O caminho até o número 5085 da Whestheimer Rd parecia interminável. Anna já deveria estar quase chegando para o encontro. Lembrou-se de quando a conheceu. Apaixonado por fÃsica e quÃmica ele escolheu o curso de engenharia biomolecular de uma universidade americana. Precisou conhecer um pouco de biologia e medicina e quando estava no primeiro ano de sua especialização foi apresentado à caloura do curso de medicina. Antes mesmo que ele tivesse dito qualquer coisa ela já havia adivinhado seus pensamentos. Num primeiro momento afastou-se, depois, quando aprendeu a proteger-se, manteve-se próximo dela pelos cinco anos seguintes, até que ela voltou para a Sevilha na Espanha.
Thomaz tornou-se um supercientista, “O Mago”,e desenvolveu tecnologia para produzir suas máquinas fantásticas. Anna especializou-se em neurologia e psiquiatria, estudou a parapsicologia e tornou-se uma manipuladora de mentes, sendo conhecida no mundo especializado como “O Cérebro”.Thomaz e Anna admiravam-se mutuamente, porém nunca arriscaram uma relação mais próxima, preservando a amizade e as trocas de experiências cientÃficas.
Anna o esperava na praça principal do edifÃcio e observava as pessoas, lia suas mentes, fazendo experiências. Ela criou seus próprios limites éticos e brigava para manter-se dentro deles. Logo que Thomaz entrou, ela o percebeu e correu ao seu encontro.
- Thomaz, como você conseguiu chegar aqui sem ser identificado?
- Como vai, tudo bem? Esqueceu que eu sou o especialista em alterações genéticas? Pois bem, uma modificação no perfil de DNA para enganar um monitor é algo muito simples de se fazer.
- Faz tanto tempo que não nos encontramos pessoalmente e nem perguntei se estava bem. Perdoe-me. Fico imaginando os riscos que você tem corrido ultimamente.
- Está preparada? Um amigo emprestou-me sua clÃnica para o experimento, não fica muito longe daqui.
- Estou sempre pronta! Tem certeza de que é isso que quer?
- Tenho.
Durante a conversa Thomaz se pegou com vontade de tocar as mãos de Anna, mas conteve-se. Já na clÃnica Anna pediu a Thomaz que explicasse novamente a sua proposta em relação de viagem no tempo. Ele começou recordando algumas ideias:
- Lembra-se da Teoria da Relatividade formulada por Einstein em 1905?
- Sim. Há 145 anosele propunha que se pudéssemos viajar numa velocidade próxima da velocidade da luz, acelerando no espaço também acelerarÃamos no tempo.
- Isto mesmo. Mas sempre esbarramos nas limitações fÃsicas e tecnológicas para construir máquinas capazes de tal proeza.
- Você inventou uma máquina capaz disso?
- Não, ela existe desde que o homem é homem!
- Como assim?
-Já chegaremos lá, Senhora “Cérebro”. Conhece a teoria criada trinta anos mais tarde: a do Buraco de Minhoca? – questionou mais uma vez Thomaz.
- Ei! O mestre em fÃsica aqui é você. Eu sou aquela que desafia os seus cálculos e projeções e em contrapartida vocês chamam o meu trabalho de pseudociência, meu caro supercientista!
- Mas para desenvolver as suas teorias eu sei que estudou muito a FÃsica.
- Da mesma forma que você tenta entender a mente humana e procurou conhecer a psicologia e a parapsicologia. Mas sei o que é um Buraco de Minhoca. Simplificando, seria uma espécie de abertura espacial, mais ou menos como um buraco negro, ligando dois pontos distantes e descontÃnuos no espaço-tempo quase que instantaneamente. O atalho no espaço também é um atalho no tempo. – explicou Anna.
- Por isso você é a minha parapsicóloga preferida!
- Deixe de ironias, seja mais objetivo, senão...
- Senão você assume o controle da minha mente e descobre tudo o que quer saber. Pois é justamente isto que preciso.
- Qual é a tal máquina capaz de viajar numa velocidade próxima ou superior a da luz, capaz de detectar ou criar um buraco de minhoca? E se for capaz de criar um buraco de minhoca, onde encontraria a energia ou a matéria para torna-lo estável?
- Estas são as mesmas perguntas dos cientistas nos últimos trinta e cinco anos. – disse Thomaz.
- E o meu supercientista já tem resposta para todas elas, suponho.
- Para todas não, mas as que eu tenho já me dão alguma vantagem na busca do conhecimento.
- Qual é a tal máquina? – insistiu ela.
- O cérebro humano. – respondeu Thomaz com um ar de seriedade.
- Certo, o pensamento, as projeções do pensamento podem viajar numa velocidade maior que a velocidade da luz. – pensou ela em voz alta.
- O nosso cérebro só utiliza uma pequena parte de sua capacidade sensÃvel e que pode ser mais bemexplorada com uma boa preparação e...
- E assim captar um Buraco de Minhocamicroscópico e passar por ele. – completou Anna.
- Isto! Acredito que esta projeção mental possa juntar matéria do outro lado e até criar um corpo fÃsico inteligente.
- E como isso seria possÃvel?
- Manipulando o DNA! – responderam os dois ao mesmo tempo.
- E se neste ponto do universo não existir a matéria da forma que conhecemos? – questionou Anna.
- É um risco, que estou disposto a correr. Também acredito que encontrarei vida inteligente, civilizações avançadas e com os novos conhecimentos levarei adiante meu projeto.
- Sim, até agora discutimos como viajar no tempo e eu havia me esquecido de perguntar: qual o seu real objetivo com essa viagem no tempo?
- Acabar com a SÃndrome.
- E como uma viagem para o futuro curaria as pessoas no presente?
- No presente não, no passado. Parece-me mais fácil viajar no tempo para frente. Acredito que no futuro encontrarei as respostas para voltar no tempo-espaço.
- Você sabe que se viajar para o futuro o tempo aqui na Terra passará muito mais rápido e se conseguir retornar poderá ser tarde demais!
- Por isso preciso descobrir como calibrar o tempo na minha jornada.
- Thomaz, satisfaça minha curiosidade, o que é este sÃmbolo no fundo do mostrador de seu relógio?
- Este é o código do meu DNA original e estas duas outras marcas menores, logo abaixo, são as modificações que fiz nele, com a introdução de alguns genes como aqueles que facilitam a concentração e maximizam o desempenho da atividade cerebral.
- Achei que o DNA humano fosse representado por uma figura helicoidal, algo como uma escada em caracol!
- Defini o meu padrão com um código próprio, assim posso protegê-lo e configurá-lo novamente.
Eles passaram alguns dias planejando e preparando a viagem. Nas primeiras sessões Thomaz experimentou com sucesso projeções para locais pouco distantes. EvoluÃram no processo até que numa das sessões ele foi mais longe e depois de uma viagem que não durou mais de quinze minutos encontrou Anna exausta. Ela havia passado a noite toda acordada ao lado do corpo de Thomaz, não queria perde-lo.
Numa nova sessão, a projeção mental de Thomaz começou a vasculhar o espaço na busca do túnel do tempo. Enquanto o processo se desenvolvia ele descrevia para Anna o que via em sua frente e em pouquÃssimo tempo ele ultrapassou as fronteiras do Sistema Solar.
Anna, maravilhada, imaginava cada coisa descrita por Thomaz. Aquilo precisava ser divido com outros cientistas e especialistas - pensava ela. Então seria essa a sensação de Johannes Kepler há mais de 500 anos atrás quando afirmou ter observado a Terra e a Lua de um ponto do espaço? Será que estas também eram as visões de Einstein? – continuou em seus pensamentos.
Com a velocidade desenvolvida ele conseguiria aproveitar a estabilidade momentânea de um Buraco de Minhoca e penetrar em frações de segundo no microscópico atalho do tempo-espaço.Thomaz ficou agitado e gritou:
- Anna, acho que consegui! No espaço há um ponto que ainda não visualizo, mas que me atrai. Deve ser o túnel.
Anna assustou-se, chamava por Thomaz que não respondia. Seu corpo estava inerte. A última expressão dele foi de um sorriso.Algo estranho começou a acontecer. Uma forte luz azul irradiava do corpo dele. Um odor adocicado e uma leve fumaça começaram a tomar conta do local. As luzes azuis davam lugar a uma chama que se alternava entre o verde, o laranja e o vermelho, transformando o corpo em cinzas. Havia apenas silêncio, nem ondas de calor se podia ver, ouvir ou sentir. Ao final, um clarão e um flash de luz azul que se deslocou rumo ao infinito. Ela não entendia o que estava acontecendo. Ficou paralisada por alguns instantes.
Nos dias seguintes Anna tentou comunicação mental com Thomaz, sem sucesso. Sem saber como agir, voltou para Sevilha. Sentia-se culpada por ter aceitado o desafio proposto por Thomaz. Estava arrependida de nunca ter falado para ele de seus sentimentos do quanto importante foi tê-lo tido em seu caminho.Isolou-se em casa.
Num domingo pela manhã decidiu visitar o local de Sevilha que mais gostava: La Giralda a torre da Catedral Gótica. Pegou o Eléctrico e desceu na Porta de Jerez. Caminhou pelas ruas até chegar a Plaza Del Triunfo, na época inundada pelo perfume das laranjeiras. Disputou o espaço com os turistas nos lances de escada e venceu os 104 metros de alturado antigo minarete da mesquita, construÃdo em 1172.
Lá de cima olhando pelo lado oeste da torre ela pode observar a Plaza de Toros de La Maestranza e mais adiante a Puente de La Barqueta sobre o rio Guadalquivir, o rio grande, de onde partiram as embarcações do descobrimento dos novos continentes. Pensando nos viajantes que se aventuravam no mar sem saber ao certo o que encontrariam, ela lembrou-se de Thomaz.
Ela ainda apoiava suas mãos sobre as pedras do campanário quando percebeu um sÃmbolo gravado na pedra.
Imediatamente olhou para o relógio em seu pulso, o mesmo que Thomaz havia entregado a ela antes das sessões de projeção mental e que ela conserva no seu braço desde então. Era inacreditável, embora mais rústico o desenho na pedraera a mesma representação do perfil de DNA deThomaz. Anna tinha certeza de que ele não estava lá antes, ela conhecia cada detalhe daquela torre que visitava desde muito pequena, porém a gravura só podia ter sido feita durante a construção do minarete. Seu amigo estava viajando no tempo!
Anna apanhou o telefone celular inseriu uma imagem de Thomaz e buscou imagens similares do passado, desde a antiguidade, que rapidamente surgiram na tela. Em todas elas a mesma expressão, como se Thomaz estivesse olhando diretamente nos olhos dela.
Ela esperou por Thomaz pelos dois anos que se seguiram. Neste perÃodo, sem que os cientistas conseguissem explicar, a SÃndrome foi perdendo força e as pessoas voltaram a sorrir. Numa tarde, quando pegava um trem para Cádiz, um sujeito sentou-se ao seu lado. Usava um casaco de lã, um gorro e óculos escuros. Acostumada a indiferença das pessoas ela não deu importância a presença dele, que por telepatia perguntou-lhe:
- Por favor, doutora, que horas são?
- Não é possÃvel! – exclamou ela olhando para o sÃmbolo na placa metálica que o passageiro segurava.
- Senti sua falta.
- Eu também, Thomaz.
Texto finalista do XIV Concurso de Contos da Fundação Petrobras de Seguridade – PETROSPublicado em antologia – dez/2014
Adnelson Campos
21/02/2015