Jussara Lucena, escritora

Textos

Telêguiados

Passei a minha adolescência num rigoroso inverno que começou no dia 21 de junho de 1978, logo após o quarto gol daquele jogo Argentina 6 x 0 Peru. A Copa do Mundo estava sendo realizada na Argentina, país que vivia um período conturbado durante a ditadura do General Jorge Videla. Aquele país buscava melhorar a sua imagem internacional, ao mesmo tempo em que as Madres de la Plaza de Mayo, choravam pelos seus filhos e netos desaparecidos.

O time do Brasil, comandado pelo contestado Claudio Coutinho era um time lento, sem empolgação, porém, conseguira passar a primeira fase e na segunda ganhou do Peru, até então time sensação, por 3 a 0. Depois o Brasil empatou com a Argentina num jogo sem gols e aquela rodada decidiria quem iria para a final contra a Holanda. Se ambos os times ganhassem seus jogos, o saldo de gols decidiria a classificação.

Meus temores começaram quando, com uma desculpa esfarrapada, os jogos do Brasil e da Argentina foram realizados em horários diferentes e os gringos jogariam sabendo do resultado do jogo do Brasil. Mas, naquela tarde o nosso time conseguiu vencer a Polônia por 3 a 1. As esperanças de ir a final estavam renovadas. A Argentina precisava ganhar por uma diferença de quatro gols de um time rápido e envolvente, comandado pelo atacante Teófilo Cubillas, porém, já desclassificado.

O jogo começou e o Peru jogava melhor, com muito toque de bola e velocidade. A Argentina poucas vezes passou o meio de campo e até os dezesseis minutos do primeiro tempo Muñante já havia chutado uma bola cruzada no poste direito de Fillol e Oblitas perdera um gol frente a frente com o goleiro argentino.

De repente tudo mudou, alguns jogadores do Peru pareciam ter abandonado o campo. O goleiro Quiroga, argentino de nascimento parecia sem ação e a Argentina venceu por 6 a 0. Depois disso várias denúncias sugiram: fraudes no antidopping, corpo mole de alguns jogadores do Peru, e uma notícia revelada muitos anos mais tarde de um acordo político entre os ditadores da Argentina e do Peru. A FIFA até hoje não conseguiu uma explicação plausível para o que aconteceu. Com certeza foi uma das maiores vergonhas do futebol mundial.

Eu que, como a maioria dos garotos, sonhava ser um jogador de futebol, jogar na seleção, não conseguia aceitar aquele resultado e a sensação de impotência diante dos fatos me arrasava. Mas não é disso que gosto de me lembrar.
O tempo passou uma nova Copa do Mundo chegou e depois de 1472 dias a chance da revanche chegara. Naquele dia 2 de julho de 1982, uma sexta feira, o dia havia começado muito bem para mim. Primeiro, fui promovido e com o dinheiro adicional daria para pagar a faculdade e ainda sobrar um dinheirinho para algumas roupas novas e quem sabe para gastar com o lazer ou convidar uma garota para sair. Gastei por conta e comprei uma camisa verde e amarela no intervalo do almoço.

Energia positiva atrai coisas boas e, na loja, encontrei a garota da minha rua, aquela que eu admirava desde garotinho. Ajudei-a na escolha de uma camisa também. Arrisquei, fiz um convite e ela aceitou me encontrar, porém, com uma condição: o Brasil precisava vencer a partida, só assim ela teria uma desculpa para sair de casa. Minha ansiedade aumentou naquela tarde. Eu tinha dois bons motivos para torcer muito pelo Brasil.

Desafiaria a máxima da “sorte no jogo, azar no amor” e vice-versa. Passei na lanchonete do Zé e fiz uma aposta no bolão. Com as vitórias que o Brasil conquistara contra a União Soviética, Escócia e Nova Zelândia o ânimo dos torcedores havia aumentado, como também aumentaram as apostas no bolão, o que prometia um bom dinheiro para os ganhadores.

O Brasil era uma seleção bastante diferente daquela que disputou a Copa de 78. Telê Santana formou um time com os inesquecíveis Valdir Peres, Leonardo, Oscar, Luisinho, Junior, Toninho Cerezo, Sócrates, Zico, Falcão, Eder e Serginho, além de outros craques no banco.

Às 17h15 min, no Estádio Sarriá em Barcelona, o nosso time entrou em campo. Eu e meus amigos assistíamos ao jogo, apertados num sofá. A televisão ainda possuía alguns chiados na transmissão internacional. A narração era de Luciano do Valle, que naquela época ainda trabalhava para a Globo.

Nosso time não tomou conhecimento da violenta Argentina que ainda tinha em seu gol o mesmo Fillol e Diego Maradona, que disputava a sua primeira Copa do Mundo e já insistia em se comparar a Pelé.

Nos primeiros minutos, Valdir Peres, que começara com uma atuação insegura contra a União Soviética fez grandes defesas e outras mais durante a partida. O jogo estava disputado, mas, o meio de campo e a defesa brasileira estavam funcionando bem. O primeiro gol aconteceu aos onze minutos do primeiro tempo. Numa puxada rápida de contra-ataque o capitão argentino Pasarela fez falta sobre Serginho Chulapa. Éder Aleixo, nosso camisa 11usou mais uma vez um dos seus “Exocet”, a sua bomba. Fillol espalmou no travessão e Zico, dividindo a bola com Serginho empurrou para o fundo do gol. Luciano do Valle narrou: “Eu ouvi o Brasil inteiro pedir Éder e ele foi lá!... Assina esse gol que é teu Zico!”. Na telinha surgia a assinatura do Galinho de Quintino. Ao fundo a música Pra Frente Brasil, a mesma da Copa de 70. Márcio Guedes, o comentarista dizia: “uma jogada perfeita, maravilhosa!”.

Faltavam mais dois gols para que eu acertasse o placar do Brasil no meu bolão. Falcão, que não havia sido convocado por Cláudio Coutinho em 1978 se destacava na partida, defendendo, armando e batendo em gol. O primeiro tempo chegou ao fim. O 1 a 0 era um placar perigoso. O intervalo de jogo foi tenso, a turma estava meio quieta aguardando ansiosamente o segundo tempo. O relógio não andava. Quem sabe saísse um golzinho do Brasil no início do segundo tempo para esfriar a Argentina e esquentar a possibilidade do encontro com a Lucinha!

A aflição durou os 21 minutos do segundo tempo. Após um toque de bola envolvente, Falcão, ele de novo, recebeu passe livre na grande área, tocou sutilmente para Serginho Chulapa, que de cabeça fez o segundo gol brasileiro. Ficamos roucos de tanto gritar. Agora era torcer para que o relógio andasse mais depressa, porém, cada segundo parecia uma eternidade.

Como dizia um amigo meu, “passados nove minutos dos grandes”, o Brasil liquidou o adversário numa jogada que começou com toque de bola no campo ofensivo. Junior tabelou com Zico, que num passe mágico lhe devolveu a bola livre para marcar. Parecíamos bobos, atordoados de alegria. Por enquanto o placar do Brasil eu havia acertado. O jogo estava garantido a favor do Brasil. Muito provavelmente eu encontraria a Lucinha na comemoração. Mas para um dia perfeito faltava um pouquinho.

Os argentinos estavam desesperados, sufocados. Passarela distribuía pontapés e para alegria da torcida brasileira, Maradona foi expulso aos quarenta minutos, após cometer uma falta violenta em Batista. Festejamos como se fosse um gol. Nunca confessei isso aos meus amigos, mas depois de comemorar pensei no bolão. Para que eu ganhasse a Argentina precisava fazer um gol. Não, eu não torceria pela Argentina e afinal, com dez jogadores era praticamente impossível que marcasse um gol no Brasil, nosso time estava perfeito! Relaxei.

Pulávamos alegremente, nem olhávamos mais para o monitor da televisão. Fomos surpreendidos quando aos 44 minutos a Argentina fez o seu gol de honra. Porém, era tarde, os hermanos, mesmo não jogando mal, estavam fora da Copa! Chegava ao fim o meu inverno particular.

Saímos para a rua. Apesar da felicidade pela vitória e pelo dinheiro que embolsaria, ainda havia algo a conquistar. O coração da Lucinha. O centro da cidade era uma confusão só! Gente alegre, alguns bêbados, outros alucinados. Um senhor andava de joelhos sobre o asfalto carregando uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, outro rezava fervorosamente. Alguns gritavam frases incompreensíveis. Ao fundo as caixas de som ecoavam a música Povo Feliz: “voa, canarinho, voa...”. Fui abrindo espaço na busca da minha paixão, a primeira depois do futebol.

Ela estava linda e apesar do frio vestia uma bermuda de jeans azul e a camisa verde e amarela. Seus olhos brilhavam e os cabelos longos e soltos acompanhavam o movimento de seus saltos de alegria. Ela veio correndo em minha direção e meu abraçou como eu nunca fora abraçado na vida. Segurou o meu rosto com as duas mãos e me beijou a boca. Naquele momento deixei de ouvir o som das buzinas, os estampidos dos fogos de artifício, os gritos da torcida enlouquecida. Sentia somente o calor dos lábios dela, seus braços me envolvendo. Como eu queria que aquilo durasse para sempre. Ficamos juntos até a madrugada, sentados no banco da praça. Ela vestia o meu casaco e abraçados olhávamos a lua cheia que iluminava os nossos corações e de todo o povo brasileiro.

Três dias depois o Brasil, inacreditavelmente, perdeu para a Itália por 3 x 2. Não importava, guardo a lembrança da melhor Seleção que vi jogar e ainda posso sentir na boca o gosto dos beijos da minha amada. Isso ninguém me tira.

Adnelson Campos
15/03/2015

 

 

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