Jussara Lucena, escritora

Textos

Piabiru

Foi só um sonho. Não tenho mais sono, meu coração está disparado, meu corpo todo suado. Os pássaros ainda não cantam lá fora, só há o som dos kyju, os barulhentos grilos e de nhakyrã, a estridente cigarra que não cansa do seu zumbido.Os raios de Jaci penetram minha oca e tocam meu rosto, minhas mãos. Posso sentir um pouco da energia da Lua.

Pela entrada da minha morada posso ver no horizonte a grande Estrela da Manhã, Airumã, que, com seu brilho fica bela para encantar ainda mais Jaci e assim embelezam ainda mais a madrugada nestas horas que antecedem a chegada de Araci, com as luzes no alvorecer. Elas preparam o caminho para a chegada de Guaraci, o Deus Sol, que numa explosão de luz e calor vem mostrar porque é o maior de todos, é aquele que dá vida. Os Urissanê, os pirilampos ainda iluminam a mata que nos rodeia.

Vou caminhar, mas em silêncio para não acordar ninguém na taba, a minha aldeia. O riacho está próximo. O som do Itaipu, o local onde as águas cantam no contato com as pedras, é ainda mais fascinante no silêncio e escuridão da madrugada. Faz calor. Suas águas me despertarão e refrescarão meu rosto. Como é bom sentir o frescor de um gole d’água na boca seca pelo sono. Nem sempre valorizamos tudo aquilo que a mãe Terra nos dá.

O tempo vai passando, a velha Aondê, a coruja, já busca sua toca. É minha velha amiga, está quase na hora do seu descanso e do início do meu dia, que vai ser longo: hoje será dia de caça!

Caço para alimentar os mais velhos da minha tribo. Não tenho mais esposa, nem filhos. Todos foram levados embora pelo homem branco, num dia em que nossos guarini, os guerreiros, estavam embrenhados na mata em busca de comida, como farei hoje. Tudo que tenho é o meu arco e flechas.

Os primeiros raios de sol vão surgindo, tingindo o céu de dourado. Sobre a floresta há uma tênue névoa, o que torna ainda mais bela a manhã. As sábias despertam a tribo com seu canto. As primeiras crianças começam a tomar conta da área externa da taba.

Vou passar na casa do pajé, pedir sua benção e comer um pouco da tapioca que sua esposa prepara. Apesar de ser feita com a mesma manioca, a dela é especial. Ela não se importa em dividi-la com pessoas como eu. Nos trata como filhos e sempre me diz: “Piatã, recomece sua vida, há muitas índias tão boas como a sua graciosa Aneci!”. Tenho a firme esperança de encontra-la e trazê-la de volta, com meus filhos. O pensamento de que possam estar mortos me destrói.

Eu e os outros guerreiros seguimos nosso rumo em busca da carne. Para chegar mais fácil à área de caça pegamos uma das trilhas do Piabiru. Dizem que nossos ancestrais construíram esses caminhos de pedra para ligar o mar às grandes montanhas das terras dos quichua, um povo que parece receber inspiração dos céus para desenhar o futuro do povo. Depois de caminhar por um bom tempo, nos dividimos para cobrir um maior pedaço da floresta. Vamos nos reunir no final do dia, dormiremos na floresta – em grupo é mais seguro – e voltamos para casa amanhã.

O sol já está a pino, só tenho mais meio dia e a sorte não tem me ajudado. Tenho fome e esta ponta de palmito de juçara vai dar para enganar um pouco o estomago. Acho que alguma coisa deve ter afugentado os bichos. É isto, estas são as pegadas do Jaguaretê, a onça e são recentes. Não posso me colocar entre ela e o vento, se ela sentir meu cheiro será o meu fim. Por melhor que seja minha pontaria, minhas flechas não são tão rápidas quanto a danada.

Sons surgem na floresta. Ouço os zunidos dos facões cortando os galhos das árvores e o ruído da mata sendo amassada pela sola de botas de couro. É o homem branco. Não tenho escolha, tenho que correr em direção a onça, eles são muitos. Preciso chegar ao Tibagi, entrar nas suas águas e esconder meu cheiro da pintada e despistar os inimigos. Não posso voltar ao Piabiru, se o acharem, todo o meu povo estará em perigo. São vários grupos. Para onde quer que eu corra, eles me cercam. Estou cansado. Vejo marcas de sangue na mata, parece ser do Jaguaretê. É um mau sinal. Gritos do homem branco. Eles comemoram a captura da onça. Será que vou ter a mesma sorte dela?

Corro sem direção. Minhas pernas doem. Não consigo pensar direito. Finalmente o rio! Por Tupã, eles estão por todos os lados! Meus pés estão cortados pelas pedras do leito do rio. Eles gritam e agitam suas armas. Se quisessem já teriam me matado. A correnteza das águas está aumentando, logo em frente há uma queda d’água. Estou parado, procuro mostrar segurança, estufo meu peito e aponto, sem ponto fixo, o meu arco. Silêncio. Um homem que parecer ser o chefe se aproxima, aponta para mim e para o grupo e grita: “Piabiru, Piabiru”.

Ele quer que eu mostre o caminho. Não posso. Não tenho escolha, só me resta uma chance, saltar na cachoeira. Tupã me ajude! Num último esforço salto em direção ao vazio. Sinto o vento que sopra de baixo para cima em meu rosto. Esforço-me para manter os olhos abertos. Não consigo controlar a carne do meu rosto. Percebo os sons da floresta, o murmurar das águas que se chocam com as pedras lá embaixo. Na névoa que se forma pelo encontro das águas vejo o rosto de Aneci e dos meus dois curumins.

Meu corpo está encharcado e refrescado pelas gotículas de água da cachoeira. Tudo passa diante de meus olhos e posso sentir o cheiro da comida de minha mãe. Lembrei-me do primeiro jundiá que fisguei neste mesmo rio, mais abaixo. Recordo a expressão do meu pai orgulhoso, me ajudando a tirar o peixe da água. O canto de ninar da minha mãe. Um último som, o canto do sabiá, o pintado.

Sinto agora meu corpo arder, como que cortado pelas águas do rio e meus ossos destroçados no encontro com a rocha. Uma dor intensa e finalmente a paz. A floresta está logo abaixo de mim. No horizonte um pequeno ponto de luz me atrai.

2.º Lugar no VI Concurso Literário Professora Edith Braga – Categoria Prosa - AJEB - Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil, abr/2015

Selecionado no Prêmio VIP de Literatura da AR Publisher Editora - 2016.

Adnelson Campos
16/04/2015

 

 

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