Jussara Lucena, escritora

Textos

O Mascate

Ontem eu estava aqui, sentado em frente à janela da sala conversando com ele. Logo depois do café da manhã meu pai apanhou o velho diário de viagens. Fez como nos primeiros anos de minha infância, escolheu uma data e leu o relato de nosso antepassado. Meu avô fazia o mesmo com ele e o pai do meu avô também. Havia se tornado uma tradição na família. Isto se tornou uma forma de agradecimento e de renovação da esperança de dias melhores.

Já podíamos ver a primeira neve do ano que se acumulava no alto do Monte Líbano. Mais próximo de nossa casa fica a estrada, que desde os tempos mais remotos serve de caminho entre Beirute e Damasco. Na beira dela, há muito tempo também, nossa família mantém um pequeno comércio, tantas vezes reconstruído, que serve de apoio aos viajantes. Foi ali que começou a história contada pelo velho Amir Ibrahim Habib e que meu pai releu, reafirmando que na vida sempre há um recomeço, que sempre podemos olhar um mesmo fato com outros olhos e usá-lo como ponto de partida para uma nova caminhada. Eu ouvia sua leitura e repetia em pensamentos as palavras, minhas conhecidas.

“Os tempos são outros, mas me sinto como o nosso povo fenício que desbravou os mares, buscando novos mundos, movimentando a riqueza dos povos, comerciando de porto em porto. Meu motivo é diferente, mas levo comigo o mesmo espírito: busco o progresso, a expansão, também um pouco de riqueza. As noites a bordo deste navio são longas, então aproveito para sonhar com o que encontrarei no fim deste horizonte. No céu, deixo para trás Antares, sigo o caminho do Escorpião, em caminho inverso, perseguindo Betelgeuse, no braço forte do gigante Órion, do oriente para o ocidente. Procuro mais tolerância e quem sabe um dia eu possa voltar e levar toda a minha família comigo.

Tenho viva na memória a imagem daquele imperador de olhos claros, barba longa de fios grisalhos. Apesar de sua realeza, demonstrava humildade, simpatia e parecia ter bom senso, qualidades essenciais para um líder. No dia que ele desceu de seu cavalo e entrou em minha loja com parte de sua comitiva, não fosse o tradutor eu não imaginaria qual seria a sua real condição na sociedade. Ele escolheu uma peça de artesanato, entregou-a para a esposa e olhando em meus olhos me fez um convite:

- O Brasil precisa de pessoas como o senhor, da gente do seu povo. Os receberíamos de braços abertos. Nossa terra é fértil, rica e de gente hospitaleira, como a do Líbano também é.

Ele se esforçou para falar alguma coisa do nosso idioma, também se expressava muito bem em francês e numa outra língua que não consegui distinguir. Pediu desconto. Eu respondi que os comerciantes e pechincheiros eram os do meu povo. Ele me respondeu que se analisarmos com cuidado, todos, de todos os povos, sempre temos algo em comum:

- Lembre-se que os fenícios se espalharam pelo mundo e estiveram muito presentes na Península Ibérica, terra de meus antepassados. Os portugueses também se aventuraram ao comércio. Assim, somos todos bons comerciantes, está no sangue. Se eu tivesse mais tempo e espaço na bagagem, estenderíamos essa nossa negociação. – argumentou ele, apontando para uma outra peça.

Servi-lhe e para a comitiva um pouco de chá. Ele me estendeu a mão, sorriu e seguiu em direção a planície de Bekaa, tão sereno quanto chegou.

Senti confiança naqueles olhos, reuni um pouco do que tinha e alguns anos depois me aventurei. Muitos patrícios estão aqui comigo e partilham o mesmo sonho”.

Nosso antepassado venceu a distância, as doenças no navio e depois de muitos dias chegou na nova terra. Levou com ele alguns objetos, coisas que lembravam o nosso lugar.

Chegando lá, fez o que sabia fazer. Começou a trabalhar numa casa de comércio de um velho português. Conseguiu algum dinheiro e comprou mercadorias, passando a trabalhar como mascate. Foram muitas meias-solas em seu velho sapato.

Por ironia do destino, era chamado de turco pelos seus clientes. Justo ele, cujo povos fugia da opressão do Império Turco-Otomano. Para os brasileiros, os imigrantes libaneses, tinham um único parentesco, eram todos “brimos”, chegados com passaportes turcos. Porém, não dava para reclamar, foram muito bem recebidos tanto pelos brasileiros como pelos outros povos que na terra viviam e não tinham noção de nossa história.

Passou por um período de relativa solidão, depois casou-se com uma jovem síria. A vida melhorou, montou uma lojinha que a mulher cuidava. Na loja as mercadorias já eram um pouco mais especializadas e os tecidos o carro-chefe. Juntou um pouco mais de dinheiro e escreveu convidando para que alguns parentes também fossem ao Brasil. Me lembro da carta, que meu pai guardava com junto com o diário e onde Amir descrevia o Brasil como um país sem fim e como ele havia se tornado importante com seu trabalho:

“São Paulo, 25 de fevereiro de 1880. Queridos, este lugar é muito grande, dizem que aqui caberiam algumas centenas de países como o nosso Líbano. Colocamos nossas mercadorias no lombo de mulas e saímos em direção ao interior. São muitos dias viajando e quanto mais distante chegamos, mais há para viajar. Muitas pessoas vivem isoladas e nós somos o elo de ligação com os centros comerciais. Tive que aprender melhor o idioma, pois para muitas dessas pessoas, nós os mascates somos a única fonte de informação e, por isso, todos nos aguardam ansiosamente. Já tenho muitos afilhados espalhados pelas rotas de comércio, resultado da amizade conquistada com a gente desse povo. A região em que moro é produtora de grãos de café. O dinheiro do café movimenta o comércio e o dinheiro é investido em indústrias. A cidade onde moro cresce muito rápido. Quem sabe um dia não me torno um Barão do Café também. É como são chamados os ricos produtores e comerciantes desse grão valioso.

O Imperador, aquele que esteve na nossa Sofar, aqui é querido por alguns, odiado por outros. Hoje se fala em libertação dos escravos. É, aqui ainda há escravos e algumas leis sinalizam a possibilidade de sua libertação. Para um comerciante como eu, isto é muito interessante, poderei aumentar o meu número de clientes. Muitos imigrantes europeus também estão chegando, a maior parte trabalha na agricultura, outros nas indústrias que começam a prosperar. Todos precisam de nós comerciantes. Acho que é uma boa oportunidade para o nosso povo do Líbano e dos nossos vizinhos da Síria.

Eu sou um admirador do Imperador, porém encontro muita gente que acha que uma República seria melhor para o país. Estão divididos e em algumas regiões há conflitos. No mês passado estive no Rio de Janeiro e quando passava por uma praça, me vi em meio à confusão do que eles chamavam de Revolta do Vintém, onde o aumento da taxa dos bondes foi o estopim de mais uma crise entre o governo e o povo. Espero que não cometam os mesmos erros que nós e mantenham o caminho da paz.

É tudo muito curioso aqui. Passei por uma estação de trens que é iluminada por lâmpadas elétricas. Um inventor, americano, foi convidado pelo Imperador a trazê-las para o Brasil. Esta terra terá um grande futuro.

Depois fui até a cidade que tem o nome em homenagem ao Imperador. Subi uma montanha para chegar lá. Me senti em casa. Talvez tenha sido esse o sentimento dele quando passou pela nossa pequena Sofar, a caminho de Baalbek, pelo vale de Bekaa. Há lugar e oportunidades para todos. Venham! Não se arrependerão. A fotografia que acompanha esta carta foi tirada na frente de minha loja. A bela mulher que me acompanha é Amina, minha esposa. Em breve a família crescerá. ”

Ele voltou a escrever por diversas vezes. Numa delas relatou novos fatos que marcaram sua vida e do povo brasileiro. A abolição dos escravos aconteceu, a República foi adotada e o Imperador que ele tanto admirava, que recebia estrangeiros de braços abertos foi expulso da terra que tanto amava, afastado do povo que protegia. Foi um dia muito triste para todos os patrícios adotados pelo senhor de barbas longas.

Amir enriqueceu e decidiu voltar para o Líbano. No início pensou que ficaria por pouco tempo e depois voltaria ao Brasil. Com a riqueza obtida, investiu nos negócios da família, seus outros filhos aqui nasceram. Veio a Primeira Guerra Mundial e com o fim dela o fim do Império Otomano, porém a França passou a influenciar a região da Palestina. Muita gente também foi para a América. Amir não mais, morreu após passar por uma doença desconhecida. Sua prole, nossa família cresceu e se manteve por aqui. Vivenciamos diversas ocupações, passamos por uma Segunda Guerra Mundial, pela guerra civil, disputas políticas, étnicas e religiosas. Nos destruímos, reconstruímos e destruímos de novo. A intolerância nos provoca tudo isto.

Ontem eu estava aqui, sentado em frente à janela da sala conversando com meu pai. Hoje, neste mesmo local eu choro a sua morte. Ele voltava com mercadorias compradas na fronteira com a Síria, quando teve um problema mecânico em seu carro. Parou num posto policial para fazer isto de forma segura. Ele me ligou, falava do telefone do posto policial. No meio de nossa conversa ouvi uma explosão, a linha ficou muda. Corri em sua ajuda. Quando cheguei, o posto policial havia sido levado pelos ares. Um homem bomba, abordado numa blitz, detonou os explosivos presos ao corpo e levou com ele alguns policiais e o meu pai. Não bastasse nossas diferenças internas, o reflexo do que acontece em Israel e na Síria também nos afeta. Fatos como este tem se tornado frequentes e afetam várias famílias.

Com meu pai se vão também minhas referências. Perdi um pouco da minha dignidade, eu e minha família. Porém não posso ficar aqui apenas com as lembranças e registros do passado. Tomei uma decisão. Preciso levar minha mãe, minha mulher e meus filhos para um lugar seguro. Farei novamente o caminho de Amir Ibrahim Habibb e chegaremos ao Brasil. Relendo a descrição daquele país no diário de meu antepassado e lendo as notícias que hoje chegam pela Internet, acredito que lá, mesmo com suas desigualdades, o lugar continua sendo hospitaleiro e uma terra de oportunidades onde é possível trabalhar e realizar sonhos.

Sei que encontrarei naquela gente um pouco do mesmo espírito daquele senhor que passou por aqui há quase 140 anos e levou com ele a imagem do país dos cedros, dos cimos nevados e tão bem recebeu o nosso povo. Mais do que isso, viverei também entre irmãos, descendentes de libaneses que hoje já tem número maior que os libaneses que vivem no Líbano. Muitos se tornaram líderes e governantes naquele país. Meu filho precisará escolher um time de futebol para torcer, eu também.

Não fujo, só aguardarei uma oportunidade para ajudar, esperar por uma nova chance de reconstruir o nosso país e as nossas cidades que já foram comparados a alguns dos melhores e mais desenvolvidos lugares deste mundo. Sonho com a retomada da prosperidade da Paris do Oriente, onde Beirute e região sejam ainda mais motivo de orgulho do seu povo e de interesse dos visitantes de todas as partes do mundo por conhecer as belezas e a cultura da nossa terra. Mais uma vez parte do meu povo precisará da solidariedade do povo brasileiro, que há muito também é um pouco libanês.

Texto selecionado com Menção Honrosa para a Antologia Muito além da montanha, da série Glorioso Império do Brasil.

Adnelson Campos
31/07/2016

 

 

site elaborado pela metamorfose agência digital - sites para escritores