Jussara Lucena, escritora

Textos

Trincheira

Depois de dois dias de calmaria, os ruídos lá de fora me trazem de volta a realidade. Os estrondos das bombas e granadas, o som estridente das metralhadoras e os tiros surdos dos canhões e dos fuzis nos enlouquecem. O frio de muitos graus abaixo de zero e a lama formada pela neve e chuva tornam a trincheira um imenso lamaçal. Não sinto os meus pés, os dedos das mãos mal conseguem acionar o gatilho.

Não lembro quando foi o meu último banho. Quando o fiz foi com a água apanhada no capacete. A sujeira já não faz diferença. Nesse buraco os cheiros das fezes e dos cadáveres em decomposição se misturam e transformam a atmosfera em algo irrespirável. Ratos e outros animais se proliferam ao redor e disputam espaço conosco. Em muito somos semelhantes a eles: rastejando, cavando o miserável espaço para que não sejamos soterrados.

Próximo de mim um soldado sussurra uma canção. Ela me fez lembrar os momentos que antecederam a minha chegada à frente de batalha. No cinema os filmes mostravam os feitos dos soldados em batalhas, as condecorações recebidas, o retorno festivo para casa. Esquadrilhas de aviões perfeitamente alinhados faziam voos rasantes e nuvens de paraquedistas saltavam de aviões de transporte e pousavam suavemente sobre os campos. Soldados felizes empunhavam metralhadoras sobre tanques de guerra. Outros fumavam e jogavam cartas em seus alojamentos, tendo ao fundo os pôsteres com as pin girls, as garotas penduradas na parede, com aquelas incríveis curvas.

Eu sabia que a guerra seria dura. Porém, eu esperava por momentos compensadores. Troquei a vida no campo pela promessa de um futuro melhor em troca da defesa da Pátria. Aqui não há nada de heroico. Muitos nem sabem ao certo por que lutam. Não queriam matar, mas se não matarem são mortos. Medalhas não podem compensar as centenas de corpos enterrados em valas improvisadas neste solo que não é o nosso.Esperamos pela morte. Talvez ela chegue hoje. Faremos uma última investida contra o inimigo. Eles parecem melhor preparados.

Um garoto enlouquecido sai aos berros, correndo para fora da trincheira. Será morto! Consegui derruba-lo, segurando-o pelos pés. Prendo-o com força. Ele se acalma e chora como uma criança, apoiado em meu ombro. Lembra-me o meu irmão mais novo. Sempre que algo o assustava ele corria para os meus braços. Sentia-se protegido. Gostaria de poder abraça-lo agora.

O comandante recebe uma mensagem pelo rádio. Chegou a hora. Alguns aviões aliados iniciam o bombardeio sobre o inimigo. A artilharia abre fogo também. Lá vamos nós. Só nos resta seguir em frente. Eu mal consigo perceber o que acontece a vinha volta. Apenas corro e atiro em direção as sombras, na direção da origem dos tiros do inimigo. O ar está repleto de fumaça. Ouço o zumbido das balas passando muito perto.
Corpos voam após as explosões. O inimigo está próximo.

Preciso colocar em ação a minha baioneta. Corpos são atingidos na minha frente. Meu Deus, por favor, permita que não tenham sido as balas da minha arma.
O pipocar dos tiros apresenta intervalos maiores. A fumaça vai baixando lentamente. Em volta só destruição. Corpos imóveis, gemidos de dor. Alguns se arrastam clamando por ajuda. Olho com mais atenção. Somos maioria. Os inimigos se rendem.

Um dos nossos maltrata um dos prisioneiros. Tento impedi-lo e convence-lo de que são como nós, eles já não representam perigo. O soldado inimigo não sabe a minha língua, mas, parece entender o meu gesto. Ajoelha-se, implora pela vida. Faço sinal que se levante. Ele busca algo no bolso. Fico alerta, mas ele apenas tira uma fotografia. Na imagem uma jovem esposa e duas lindas menininhas com não mais de cinco anos. Eles são desarmados e trancafiados em uma grande sala, escombros de uma escola. Socorremos os sobreviventes, enterramos nossos mortos. Os prisioneiros enterram os seus.

Exaustos preparamos algo para comer. Estava quase esquecendo como é boa a sensação de ficar em pé. Conseguimos até rir um pouco, comemorando a vitória.

Dormi pouco menos de duas horas, chegou o meu turno de guarda. Há ruídos nos escombros à minha frente. Chamo a atenção do outro guarda e seguimos em direção às ruinas de uma casa feita de pedras. Uma granada é lançada em nossa direção. Percebo a luz da detonação e um som surdo impacta meus ouvidos. Só resta a escuridão.

- Comandante! Comandante! Parece que a anestesia local lhe trouxe um pouco de sono também.

- É, peguei no sono mesmo. Conseguiram retirar o estilhaço?

- Sim. Agora só resta mais um. Dê uma olhada em sua radiografia. Mas ele ainda está numa região de difícil acesso. Mais alguns anos e o seu corpo o expulsa.

- É incrível! Passaram-se mais de sessenta anos e eu ainda guardo as minhas relíquias de guerra, os estilhaços daquela granada. Por falar nisso, durante o seu trabalho eu tive o mesmo sonho com as visões daquele dia fatídico. Durante muito tempo essas lembranças me perseguiram mais fortemente. Já fazia algum tempo que isto não acontecia.

- O senhor teve muita sorte comandante. Este estilhaço, antes alojado perto do coração, poderia ter sido fatal.

- Meu companheiro de guarda não teve a mesma sorte.

- Até a próxima comandante!

- Até! Vou esperar o meu neto lá fora, aproveitar um pouquinho da luz do sol.

Neste meu resto de vida tento acreditar que os homens tenham aprendido com os horrores das guerras passadas. O noticiário insiste em me dizer o contrário. Meu neto está atrasado. Acho que vou até a banca de jornal.

- Parado aí, velhinho!

- O que vocês querem?

- Vacilou! Passa a carteira.

- Vocês não têm mais o que fazer?

- Olha aí a carteira do coroa, soldadinho, herói de guerra.

- Você não sabe do que está falando.

- Porque bateu no velho?

- Ele levantou a bengala.

- Tá morto.

- Vaza, vaza! Velhote miserável, só tinha dez paus.

Texto selecionado para compor a Antologia Segunda Guerra Mundial organizada pela Editora Illuminare.

Adnelson Campos
13/10/2016

 

 

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