Jussara Lucena, escritora

Textos

Redenção

Ainda encharcado pelo suor de um dia intenso de trabalho na construção civil, Pedro colocou em seu bolso o mísero dinheiro do vale semanal. Seria suficiente para a compra do remédio do filho do meio, castigado pela bronquite. O que sobrasse daria para algumas latas de leite em pó para o bebê e alguns quilos de arroz e feijão para o restante da família. Precisaria atrasar mais um pouco o aluguel. Mas quem sabe conseguisse algum bico nos fins de semana. Pagaria no mês seguinte.

O caminho para casa era uma verdadeira provação, havia um bar em cada esquina. Durante a semana era bem mais fácil resistir. Precisava trabalhar no dia seguinte e um emprego para alguém sem qualificação ou experiência era algo difícil de conseguir. Só que no sábado a turma toda saía para beber e jogar. Precisava ser forte, tinha que levar o dinheiro para casa.

Quando passou em frente ao bar, avistou velhos conhecidos. Na porta, um cartaz improvisado: “Hoje: torneio de sinuca”. Parou. Ele era muito bom com o taco. Faltava treino, afinal, uma partida não custava tão barato assim. Mas resolveu entrar, um copo de cachaça não faria mal a ninguém. Quem sabe não surgiria alguém sem parceiro que lhe convidasse para o jogo? Também aproveitaria para comprar uma volta de linguiça e assim agradar a patroa.

Serviram-lhe o copo da bebida. Hesitou por um instante pensando na mulher, nos filhos, no garoto doente. Sorveu o aroma da pinguinha e virou o copo, num só gole. O líquido lhe queimava a garganta. Era como se sua alma fosse lavada, o corpo aliviado das dores do trabalho duro. Um curto e reconfortante momento de prazer.

Pediu mais uma, duas, três. Perdeu-se na contagem. Já não sentia mais o sabor e entornava os seguidos copos de forma automática. Mal percebia ao fundo o som da música sertaneja reproduzida no último volume em um aparelho de segunda linha.

Agora era outra pessoa, falante, risonho. Sentia-se feliz. Taco em uma mão, copo na outra, foi ganhando as disputas.

No intervalo de jogo, foi até o banheiro. Usava um dos mictórios amarelados e malcheirosos quando um desconhecido aproximou-se e puxou conversa. Quando saíam o sujeito, que se apresentou como Caniço, ofereceu-se para pagar-lhe uma bebida. Aceitou. Falava sem parar, o desconhecido apenas ouvia e de vez em quando provocava ainda mais a sua fala. Ele falou do filho doente, sobre o dinheiro que precisava levar para casa. Mostrou as notas já amassadas e emboladas em seu bolso.

Jogou uma nova partida, perdeu. Muito bêbado e sem controle dos movimentos, sentou-se num canto e resmungou reclamando da falta de sorte naquele dia. O desconhecido ficou ao lado dele, ouviu mais um pouco da sua falação e, disfarçadamente, enfiou a mão em seu bolso.

Ele levantou, foi até o balcão e pediu mais uma. Só quando foi pagar percebeu a falta do dinheiro. Procurou o desconhecido. O homem estava saindo do bar. Pedro saiu correndo atrás do sujeito, que parou diante dele. As palavras mal saíam de sua boca quando ele tentou insultar o ladrão. Caniço, que se conservava sóbrio, começou a desferir golpes contra ele. Ele tentou revidar, lançou um soco no vazio, desequilibrou-se e caiu com o rosto sobre as pedras britadas espalhadas no meio da rua. O sangue que escorria sobre sua face prejudicava ainda mais a visão e a sua luta. Enquanto o sujeito fugia, Pedro sem perceber lutava contra um inimigo imaginário, até cansar e cair sentado sobre uma poça d’água.

Pouco depois, trôpego e machucado, ele seguiu o caminho de casa. Sem controle das pernas caiu numa vala à beira da estrada. Olhou para o céu. As estrelas pareciam girar. Ele não conseguiu manter a própria cabeça. Esforçou-se em vão para levantar. Apagou.

Muito perto dali, um carro em alta velocidade era perseguido pela polícia. Um dos ocupantes abriu a janela e jogou uma valise na direção da mata ao longo da via. A valise caiu sobre o homem bêbado que acordou com o impacto dela contra seu peito. Pedro pode perceber o som da sirene e da aceleração dos carros em perseguição quando se distanciavam.

Sem entender bem o que acontecia, ele sentou e tentou se situar. Olhou em volta e percebeu a valise aberta. Apanhou uma caixa de fósforos que havia enfiado no bolso. A tênue luz revelou um tesouro. A mala estava repleta de maços de notas de cem. Ele não conseguia calcular quanto dinheiro era, mas já começava a fazer planos de como gastá-lo. Imaginou-se com a família em uma casinha própria, um carrinho na garagem, as crianças bem vestidas. Adeus bronquite!

Parou de sonhar. Pensou no dono do dinheiro que poderia voltar. Poderia ser dinheiro desonesto, de gente perigosa, porém poderia mudar a vida dele. Pensou em correr para casa. Precisava de um caminho alternativo, por isso andou por quase um quilômetro.

Cansado, sentou-se sobre uma pedra. A cabeça ainda lhe doía e as pernas continuavam bambas. Foi tempo suficiente para repensar o que fazer. Decidiu voltar e tomar mais uma bebida, algo diferente daquela cachaça de quinta categoria. Quem sabe ainda tivesse sobrado alguns daqueles espetinhos tão cheirosos que a economia do dinheiro não lhe permitia comprar. Depois teria tempo para aproveitar a bolada com a família.

Olhou em volta e encontrou um terreno com uma casa em construção. Ali poderia esconder o dinheiro. Enfiou dez das notas no bolso, cobriu a valise com algumas telhas e voltou ao bar. Pagou bebida para todos, saboreou alguns espetinhos e bebeu ainda mais. Riu, gargalhou, contou histórias. Lembrou-se de não contar a ninguém sobre a valise, já havia sido roubado naquela noite. Os companheiros de bar não entenderam como ele havia conseguido o dinheiro. Não importava, queriam beber.

Assim não percebeu o tempo passar. Havia gasto a última nota. Rindo e falando sozinho saiu do bar. O dinheiro, quem diria, compra amigos. Nunca antes tantas pessoas haviam lhe abraçado, apertado a sua mão. Alguns nunca haviam o chamado pelo nome antes!

Já era muito tarde, estava quase amanhecendo. A dona encrenca estaria muito brava. Ah! Mas quando a Ritinha visse todo aquele dinheiro o perdoaria. Quem sabe até aproveitasse que as crianças estavam dormindo e comemoraria com ele como na primeira vez que passaram a noite juntos.

Seguiu a passos rápidos e desceu o terreno onde escondera a valise. As telhas que havia usado para cobri-la estavam espalhadas. Talvez não fosse bem ali. Vasculhou o local por diversas vezes. Desistiu, caindo de joelhos. Ergueu-se lentamente. Em sua frente surgiu um garotinho com lágrimas nos olhos. Era Betinho, o filho mais velho. O menino estendeu-lhe a mão. Recusou ajuda num primeiro momento, porém o filho insistiu. Pedro esforçou-se para parecer firme. Cambaleou, o filho o segurou e abraçou. O garoto tocou seus ferimentos e disse-lhe:

- Pai, a mãe pediu para procurar o Senhor, ela está desesperada!

- O que aconteceu?

- O Zeca. Ele morreu! O bombeiro disse que foi pneumonia.

Pedro gritou em silêncio: “perdão, meu filho! ”. Não conseguiu dizer mais nada, as lágrimas o sufocavam.

Conduzido pelas mãos do filho mais velho caminhou em direção a sua casa, enquanto o Sol nascia para um novo dia, indiferente a sua dor.

Texto selecionado para compor a Antologia Perdoe-me - Dramas familiares organizado pela Editora Illuminare.

Adnelson Campos
13/10/2016

 

 

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