Textos

Erva Benta

Era uma cidade muito tranquila, que disputava com outras tantas cidades do Sul o título de “Capital da Erva Mate”. Seus habitantes, a maioria agricultores, pequenos proprietários, era gente simples, hospitaleira e curiosa. Naquele tempo, raros eram os aparelhos de televisão e o rádio era o principal meio de comunicação, como continua até hoje.

Certa manhã, o locutor que transmitias as escassas notícias locais trouxe algo que mexeria com toda a vida dos moradores: o lugar receberia um tal de engenheiro de minas que faria uma primeira prospecção para exploração mineral no solo do município. Palavras difíceis, as quais a população não estava acostumada. Isto bastou para instigar a imaginação e gerar especulação entre os moradores.

Falou-se que a palavra prospecção estava ligada ao petróleo e já tinha produtor de milho e feijão imaginando dar uma picaretada no chão do sítio fazendo jorrar o líquido negro.
Alguns acreditavam que o que estava escondido debaixo da terra fosse ouro ou pedras preciosas. Um dos vereadores apresentou uma proposta para mudar o nome do lugar para Eldorado do Sul. Centenas de boatos se espalharam.

No dia da chegada, todos o aguardavam ansiosamente e pensavam numa forma de aproximação. Queriam levar a bandinha local para recebê-lo, mas a cidade estava de luto.
Ao longe, na reta que antecedia a entrada da cidade, se via a poeira levantada pelo velho ônibus e espalhada pelo gelado vento que soprava. Todos procuraram um lugar para, disfarçadamente, observar o desembarque na rodoviária, que também era um bar e restaurante. O veículo não desembarcou mais do que meia dúzia de pessoas. O último a descer foi o engenheiro, identificado pelo traje: calça social, uma camisa branca e paletó e um sapato de bico fino. Também trazia uma valise e uma pequena mala de viagem. Ninguém o abordou, esperariam o momento certo.

O viajante dirigiu-se até a pequena hospedaria e pediu um quarto. O melhor quarto já estava preparado para ele, porém o hospedeiro pediu que aguardasse um momento que iria verificar se havia disponibilidade. Subiu ao quarto, cansado tomou um banho, quase congelou, agasalhou-se e tirou uma soneca.

Quando acordou, olhou pela janela do quarto, que dava para a rua principal, estranhando o movimento. A cidade toda parecia desfilar pela porta da hospedaria, pela curta rua principal. O rapaz vestiu-se e desceu as escadas pensando em dar uma volta pela praça. Quando ia saindo, o garoto que tomava conta da portaria o abordou e disse:

- O Prefeito pediu para lhe avisar que o velório está acontecendo no pavilhão da igreja.

- Velório? De quem?

- Da Dona Mariquinhas, mulher do Coronel Hermenegildo Marcondes!

- Coronel Hermenegildo Marcondes?

- Sim. Não me diga que não o conhece? Todo mundo conhece! Ele é o dono de metade da cidade!

- Me perdoe, mas não o conheço.

- Mas vai ao velório, não é? Todas as pessoas importantes da cidade vão. O senhor também é autoridade, não pode faltar!

- Onde fica o tal pavilhão? – disse ele, não querendo contrariar.

- Onde mais? Ao lado da igreja!

Desconfiado, caminhou um pouco e não demorou muito a encontrar a igreja, cuja torre se destacava entre as pequenas edificações da área urbana. Em passos lentos aproximou-se da entrada do pavilhão lotado. Um senhor estrategicamente colocado na porta o cumprimentou, apresentou-se e dali mesmo começou a apontar cada uma das pessoas.

Em volta do caixão o Coronel e suas duas filhas estavam mais próximos da defunta. O Prefeito e sua esposa se posicionavam do outro lado e vereadores discursavam logo atrás. O delegado acompanhado de um soldado parecia estar vigilante. Rezadeiras já estavam posicionadas aos pés do esquife. Outros tantos comiam, bebiam e contavam histórias. Por alguns instantes ele virou o centro dos olhares. Não chegou a perceber.

O Secretário de Obras, que o recebeu, levou-o até o lado do Prefeito. O engenheiro fez o sinal da cruz e começou suas orações por uma pessoa desconhecida. O Prefeito, em silêncio, o saudou com reverência, o cutucou com o cotovelo e enfiou na sua mão um objeto estranho para, nunca visto na sua saudosa Minas Gerais, onde se criou comendo pão de queijo e frango com ora-pró-nóbis.

Era uma cuia feita com um belo porongo, colhido na minguante de janeiro, quando o porongo começa a ficar maduro, como manda a melhor tradição. Bem polida com cera, tinha a borda revestida em aço inox. Dentro, a erva muito bem montada envolvia uma bomba de prata adornada por um belo rubi e pedras menores. A ponteira, revestida em ouro, representava o poder de seu proprietário. Para proteger a mão do calor e suportar a cuia quando em repouso, havia um porta-cuia feito em couro, com o relevo de uma araucária.
Apesar da proteção ele pode perceber que dentro da vasilha havia uma água bastante quente. O aroma que a erva exalava trazia consigo um pouco do cheiro da fumaça do fogo usado para sapeca-la e da secagem em um barbaquá.

Pouco antes, as rezadeiras haviam iniciado uma ladainha em sequência ao terço que terminara naquele exato momento. Depois, por alguns instantes, o burburinho cessou e o silêncio tomou conta do ambiente. O engenheiro, sem saber o que fazer com aquilo, continuou segurando o exótico objeto.

Passado um pouco mais de tempo, percebeu que todos o observavam segurando, sem o mínimo jeito, a cuia com o chimarrão. Um senhor próximo dele cochichou para o vizinho:

- Conheço um sujeito que morreu com uma cuia na mão!

- E outros dez esperando a vez! – Respondeu o outro.

O Prefeito, incomodado pela demora, sinal de má educação, fez um gesto, erguendo as sobrancelhas, como quem diz: vamos lá!

O rapaz continuou sem entender. Então, o governante quebrou o silêncio e insistente disse:

- Vá em frente!

Desconcertado, o jovem colocou a cuia na mão esquerda, pegou a bomba pela ponteira com a mão direita, arrancou-a da cuia e, para espanto de todos, aspergiu a erva, quente e umedecida, sobre a falecida que jazia no sono eterno, indiferente aos respingos que cobriam de verde sua face e o límpido vestido branco que trajava.

Texto selecionado para compor a antologia Folclore Regional elaborada pela Editora Illuminare.