Jussara Lucena, escritora

Textos

Um presente para o meu futuro

Para o velho senhor os momentos de quase lucidez se tornavam mais raros. Ele sabia que havia experimentado o amor, o carinho, a amizade, tinha consciência do que era cada um desses sentimentos, porém não sabia por quem ou com quem havia dividido tais emoções. Passava horas e horas tentando resgatar lembranças. Tinha dificuldade em distinguir o real do imaginário. O fracasso o angustiava. Não tinha noção de quanto tempo estava naquele local, repleto de gente que esperava apenas pela hora de partir.

Naquele dia ele estava bem. Em momentos como este ele sempre ia até a sala de leitura, pegava um pedaço de papel e começava a rabiscar histórias, criar personagens. Como tinha dificuldade em nomeá-los, os numerava. Esperava pelo dia que conseguisse batizá-los. Fazia de conta que cada parágrafo escrito era um fragmento de sua própria vida, construía um passado fictício e estendia sua vida por alguns anos.

No caminho, ouviu o som da campainha, espiou pela janela. Ainda tinha a esperança de que um dia um rosto conhecido passasse pela porta. Não foi dessa vez.
Sentiu-se menos triste, haviam chegado novos livros, surrados e amarelados, como sempre. Provavelmente sobras da limpeza de alguma casa antiga. Para ele, um verdadeiro tesouro. A sua doença trazia algo bom em relação aos livros: eles pareciam sempre trazer novas histórias. Em frente a estante, ele lia com os dedos a lombada de cada um dos exemplares, até que se deteve apontando para um livro cujo título lhe pareceu familiar: “Um presente para o meu futuro”. Colocou os óculos para conseguir ler o nome do autor. Perguntou para uma das enfermeiras que passava:

- Como é mesmo o meu nome?
- Oliveira, Nando Caio de Oliveira – respondeu ela.
- Que coincidência, é o nome do autor deste livro.
- Vai ver foi o senhor quem escreveu! – disse a enfermeira zombando dele.

A coincidência de nomes o intrigou. Sentou-se na primeira poltrona que encontrou e partiu imediatamente para a leitura. Deteve-se na segunda orelha. Lá havia uma fotografia de um senhor de cinquenta anos, sorriso estampado no rosto, cabelos já grisalhos, segurava em uma das mãos um retrato de família. O texto destacava que a obra, uma ficção, incluía vários elementos e experiências vivenciadas pelo autor e por pessoas mais próximas a ele. Será? – perguntou-se.

Começou a devorar o texto. As personagens passaram a ganhar vida, as cenas materializavam-se à sua frente e ele podia “adivinhar” o texto do parágrafo seguinte. Lembrou-se do dia em que decidiu escrever o livro, do acordo feito com a esposa: logo que terminasse de escrever fariam uma viagem com os filhos e netos, para recuperar o tempo em que ele se trancaria no escritório para finalizar a obra. Ela sabia que enquanto não chegasse ao ponto final ele a deixaria de lado, perderia alguns quilos e os filhos e netos precisariam contentar-se com alguns resmungos do outro lado da porta. Valeu apena, foi sua melhor obra. Eles não compreendiam, mas ele sabia que seria um de seus últimos trabalhos. Ele não precisava de médico para saber que estava perdendo a memória. Não podia perder tempo. O texto reunia algumas de suas mais doces lembranças, disfarçadas entre os momentos e cenas vivenciadas pelas personagens. Seria a sua memória no futuro.

Quando chegou ao final das quase trezentas páginas, queria mais. Uma lágrima escorreu pela sua face, num misto de alegria e de tristeza questionou-se: “O que aconteceu com os meus amores, por que não estão aqui comigo?”.

Sentiu-se vazio. Começou a ler o livro novamente e foi interrompido pela atendente. Ela lembrava-o que estava na hora do ritual da noite: tomar banho, jantar e em seguida deitar. Insistiu em ficar mais um pouco, ela não concordou. Ele tentou contar o que estava acontecendo, a moça não o ouviu. Na cama, as tramas, as cenas da história, as imagens da vida em família ainda lhe povoavam a mente. O sono não vinha e ele não queria que viesse. Foi vencido pelo cansaço e dormiu com o livro aberto nas mãos.

Na manhã seguinte estranhou o livro sobre seu peito. Levantou-se e o objeto foi ao chão. Ele permaneceu indiferente e acabou chutando o livro. A enfermeira o chamou pelo nome. Ele não respondeu. Ela puxou-o pelo braço para conseguir sua atenção e leva-lo para sala do café. Nando parecia apenas vegetar.

No quarto, a faxineira realizava o seu trabalho ao mesmo tempo em que escrevia mensagens no telefone celular, tropeçou no livro. Com raiva descartou o velho e desgastado objeto na lixeira. “Já deu o que tinha quer dar” – pensou.

Alguns minutos mais tarde, na varanda da casa de repouso, o velho senhor movimentava-se na poltrona como numa cadeira de balanço imaginária. Sem lembranças, sem motivo para viver, indiferente ao belo dia de céu azul e ao perfume das flores do jardim soprado pela brisa. Suas memórias seguiam num caminhão, rumo ao lixão da cidade.

Texto publicado na antologia bilíngue (português/espanhol) Espinhos e Rosas editada pela Illuminare em março de 2017.

Adnelson Campos
22/09/2017

 

 

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