Textos
Vingança ao amanhecer (novo)
Ele rodava pela cidade vazia e molhada pela fina chuva que insistia em cair. Alguns luminosos ainda permaneciam acesos e apesar do pouco movimento a cidade nĂŁo adormecia.
Parou no sinal e observou um outdoor onde uma bela jovem, morena, de cabelos compridos e olhos negros usava um batom vermelho cujos lĂĄbios retocava. Lembrou-se da primeira vez que viu LĂgia. Ela usava um batom como aquele. LĂșcio permanecera por mais de vinte minutos olhando para sua boca, hipnotizado. Ele nĂŁo enxergava mais nada naquele bar a nĂŁo ser o movimento dos lĂĄbios dela, porĂ©m, nĂŁo teve coragem de se aproximar.
- LĂșcio, eu estou falando com vocĂȘ  completou Marcos chamando a atenção dele.
- Me desculpe. VocĂȘ conhece aquela garota?
- Qual delas? A de cabelos compridos, pele bronzeada e olhos negros.
LĂșcio ainda nĂŁo havia parado para pensar nas outras caracterĂsticas fĂsicas da mulher.
- EstĂĄ vidrado naquele bocĂŁo, nĂŁo Ă©? Ela Ă© a aniversariante do grupo, LĂgia. Frequenta a mesma classe que a minha irmĂŁ Â comentou Marcos.
- Sonhei com uma boca daquelas a minha vida inteira!
- Vai tirando o cavalinho da chuva. Ela Ă© noiva de um milionĂĄrio.
O tempo passou, LĂșcio iniciou a carreira de promotor, LĂgia concluiu o curso de direito. Encontraram-se novamente em um tribunal. LĂșcio era muito competente, dificilmente perdia uma causa. Por isso, LĂgia apesar de autoconfiante tremia antes do inĂcio da audiĂȘncia. Seria a oportunidade de ficar frente a frente com o competente promotor. DerrotĂĄ-lo, um grande passo na carreira. Se conseguisse um abrandamento da pena jĂĄ se sentiria satisfeita, pois o cliente insistia na inocĂȘncia e ela acreditava que ele nĂŁo fosse tĂŁo inocente assim.
A audiĂȘncia começou tensa. Os auxiliares de LĂșcio iniciaram o processo de acusação e inquiriam as testemunhas com muita perspicĂĄcia e frieza. LĂgia nĂŁo se abatia, tornando a disputa entre as partes ainda mais acirrada. LĂgia olhava para LĂșcio e, entre seus pensamentos voltados ao caso, tentava lembrar-se de onde o conhecia. Num primeiro momento evitou os olhos dele, temendo uma intimidação, porĂ©m quando olhou pela primeira vez percebeu certa inquietação. Ele parecia desarmado.
LĂșcio surpreendeu-se quando viu a Dra. LĂgia. NĂŁo esperava encontrar a garota do bar numa sala de audiĂȘncias. Perdeu sua concentração. Observava a advogada que se agigantava durante a sessĂŁo e começou a admirĂĄ-la ainda mais. Tentava em vĂŁo fazer anotaçÔes, nĂŁo conseguia organizar seus pensamentos.
Confiantes, seus auxiliares jĂĄ davam a causa como ganha, fizeram os Ășltimos preparativos para a entrada triunfal do chefe, como sempre faziam em todos os casos. Ele saberia como colocar a advogada em seu lugar, pensavam.
O Juiz passou a palavra para LĂșcio:
- MeritĂssimo, Senhores, Senhoras, avaliando a beleza da nobre advogada de defesa...
O tribunal do JĂșri foi uma gargalhada sĂł, mesmo o juiz que se esforçava para mostrar-se sĂ©rio, frio e imparcial, nĂŁo resistiu. Para conter os risos, suspendeu sessĂŁo. LĂșcio nunca se sentira tĂŁo fragilizado em um processo como naquele.
LĂgia nĂŁo riu, apenas enrubesceu e tentou esconder-se atrĂĄs de seus Ăłculos. Sim, era a sua chance de derrotar o impiedoso Dr. LĂșcio Rangel. Quem sabe seria a oportunidade de torna-se sĂłcia do escritĂłrio e alavancar a carreira e transformar o sonho do apartamento na Avenida Central em algo concreto.
No intervalo LĂșcio aproveitou para refazer-se e pensar em como corrigir o erro. Sobe pressĂŁo, rapidamente ordenou os pensamentos. Tomou um copo de ĂĄgua, nĂŁo disse uma sĂł palavra aos assistentes, apenas leu o que haviam anotado durante a sessĂŁo e voltou para o plenĂĄrio, tomando o cuidado de ajustar a gravata.
A jovem advogada nĂŁo teve chance, os anos de experiĂȘncia de LĂșcio e as fragilidades de conduta de seu cliente decretaram a sua derrota. Os presentes que antes riam da situação do promotor agora sentiam vontade de aplaudi-lo. LĂgia cumprimentou o promotor, que sem jeito e embasbacado nĂŁo soube como agir diante dela:
- Me perdoe doutora, nĂŁo queria constrange-la diante do pĂșblico.
- Pensei que fosse o senhor quem tivesse se constrangido promotor! Parabéns pela atuação! Aprendi muito hoje.
Ao fundo da cena de despedida entre a advogada e o promotor, o condenado esbravejava:
- Sua advogada de merda, por sua incompetĂȘncia eu ficarei preso, nĂŁo por muito tempo. Quando eu sair de lĂĄ eu juro que pessoalmente a farei pagar por essa falha.
Depois daquele dia LĂșcio aproximou-se definitivamente de LĂgia. Começaram um relacionamento que se nĂŁo perfeito os fazia muito felizes. Preferiram continuar morando em casas separadas. Convinha para que a profissĂŁo nĂŁo atrapalhasse a vida pessoal e vice-versa. A quĂmica entre os dois reagia muito bem.
O sinal de trĂȘs fases de abriu. Ainda sentia o gosta da boca de LĂgia e o seu perfume continuava impregnada nas mĂŁos e roupas dele. Naquela noite em especial ele nĂŁo gostaria de ter partido, preferia ter acordado na manhĂŁ seguinte ao lado dela. JĂĄ eram quase seis horas da manhĂŁ. Resolveu passar pela Praça da Alvorada, onde estava instalada uma grande tela onde projetavam-se as primeiras notĂcias do dia.
As notĂcias internacionais foram as primeiras. Logo que começaram as informaçÔes locais, uma manchete o deixou desconcertado: o chefe do trĂĄfico de drogas JoĂŁo Paulo Mendozza havia escapado da penitenciĂĄria federal, numa fuga espetacular que mais lembrava uma operação de guerra.
Mendozza era o antigo cliente de LĂgia que colocou o casal frente a frente pela primeira vez. LĂgia, antes do julgamento, estava convencida de que o cliente era apenas um pequeno comerciante envolvido por uma facção criminosa. Na realidade descobriu-se durante o julgamento e condenação que ele coordenava as açÔes de um cartel internacional de drogas e tambĂ©m era o principal responsĂĄvel por uma sĂ©rie de mortes, tanto de traficantes rivais quanto de autoridades e polĂticos locais.
LĂșcio lembrou das palavras do bandido ao final do julgamento: ÂQuando eu sair de lĂĄ eu juro que pessoalmente a farei pagar por essa falhaÂ.
Ela estava em perigo, concluiu. Tentou falar ao celular, porĂ©m, nĂŁo havia resposta. LĂgia desligara o aparelho para nĂŁo ser incomodada. Os dois haviam aproveitado bem a noite e ela nĂŁo dormira atĂ© entĂŁo. Tentou o telefone fixo, tambĂ©m desligado. Arrancou o carro rapidamente, rumo ao outro lado da cidade. O cafĂ© espalhou-se pelo piso do carro.
Em seu apartamento, LĂgia foi ao banheiro vestindo o roupĂŁo que LĂșcio usara antes de sair, uma forma de ainda o sentir por perto. Encheu a banheira com ĂĄgua quente e escolheu uma mĂșsica para servir de fundo ao ritual.
Na entrada do edifĂcio um morador procurou pelo porteiro que desaparecera. Cansado de esperar voltou ao seu apartamento esbravejando. Durante o dia procuraria o sĂndico para reclamar. No caminho para o elevador esbarrou em um sujeito desconhecido. Trajava boas roupas e estranhamente usava um chapĂ©u. Pensou que fosse um novo morador e irritou-se ainda mais: a administração do edifĂcio outrora informava aos demais moradores quando gente nova mudava para lĂĄ.
O estranho esperou um pouco no hall de entrada e pegou o elevador de serviço. Quando chegou ao oitavo andar conferiu a arma escondida sob o paletĂł e conectou o silenciador. Com facilidade abriu a porta usando uma cĂłpia da chave. Em silĂȘncio, entrou no apartamento de LĂgia. Percebeu o som que vinha do banheiro. Foi atĂ© o quarto e procurou pelo telefone celular dela. Ligou-o, encontrou o nĂșmero de LĂșcio e mandou-lhe uma mensagem: ÂSe quer ver a sua namoradinha ainda viva, venha rĂĄpido e sozinhoÂ. Voltou atĂ© a sala e preparou uma dose de bebida, sentou-se no sofĂĄ e apreciou a mĂșsica escolhida por LĂgia.
LĂșcio percebeu a mensagem enviada do telefone de LĂgia pelo toque em seu aparelho. Buscou ansiosamente pelo telefone que escapou de suas mĂŁos. Distraiu-se por um instante e quase bateu no veĂculo que vinha na direção oposta. Desesperou-se com a mensagem. Faltavam apenas algumas quadras para chegar ao prĂ©dio. Pensou em chamar a polĂcia, porĂ©m, nĂŁo poderia arriscar a vida de LĂgia. Tentaria encontrar alguma forma de salvĂĄ-la. Sua mente privilegiada analisava cada uma das possibilidades.
LĂgia secou-se e vestiu novamente o roupĂŁo do amado. Ainda com os cabelos molhados seguiu em direção a sala cantarolando a canção reproduzida no aparelho de som. NĂŁo percebeu a presença do estranho que lhe desferiu um golpe contra o rosto. Cambaleante nĂŁo conseguiu reagir. O homem torceu o seu braço, colocou o cano da arma na testa dela e gritou:
- Agora vamos esperar pelo seu namoradinho!
- Por que estĂĄ fazendo isso?
- VocĂȘ acabou com a minha vida!
- Pensei que tivĂ©ssemos nos acertado, que vocĂȘ tivesse entendido.
- Minha vida acabou depois daquela noite.
LĂgia faria outras perguntas, porĂ©m o sujeito amordaçou-a e jogou-a no chĂŁo, arrancou-lhe o roupĂŁo e amarrou suas mĂŁos. Ordenou que ela sentasse.
O promotor entrou pela garagem do edifĂcio e correu pelas escadas, com a arma em punho. Chegando ao apartamento 802 encontrou a porta aberta. Na antessala, pareceu reconhecer o chapĂ©u depositado sobre a poltrona. NĂŁo era Mendozza.
Pensou por alguns instantes, entrou na sala onde teve a visĂŁo de LĂgia presa e Fernandes, o antigo noivo milionĂĄrio de LĂgia, abrindo o zĂper da calça e colocando o cano da arma na boca dela. Ela se esforçava, em vĂŁo, para escapar.
- EntĂŁo doutor, veio salvar a namoradinha?  disse Fernandes, percebendo a presença de LĂșcio e depois beijando o pescoço e o canto da boca da moça.
- Depois de todos esses anos, o quer Fernandes?
- Vingança!
Fernandes ordenou que LĂșcio soltasse a arma, apanhou-a e abriu a janela da sacada e disse:
- VocĂȘ chegou antes da hora, nem tive tempo para uma Ășltima brincadeirinha, para lembrar dos velhos tempos. Mesmo assim, amanhĂŁ os jornais noticiarĂŁo a morte do grande promotor e de sua namoradinha. O homem enciumado se joga, com a amada, do oitavo andar, depois de encontrar a amada com o antigo noivo, nĂŁo se conforma, o expulsa do apartamento. Direi que nĂŁo tive como evitar a tragĂ©dia.
- E porque acha que eu me jogaria com ela?
- Simplesmente porque se nĂŁo fizer, primeiro acabo com ela na sua frente e depois que vocĂȘ chorar bastante pela partida dela, faço o mesmo com vocĂȘ. VocĂȘs nĂŁo se amam? Estou oferecendo a oportunidade de partirem juntos!
LĂșcio se recusava a fazĂȘ-lo. Fernandes curvou o corpo de LĂgia por sobre o parapeito da sacada.
O promotor procurava encontrar um ponto fraco de Fernandes. Lembrou-se de alguns comentĂĄrios de LĂgia sobre ele, um empresĂĄrio bastante agressivo, porĂ©m que deixava o trabalho sujo para seus assistentes. Fernandes tambĂ©m era hipertenso e jĂĄ passara da meia idade. Precisava arriscar. Se realmente Fernandes estivesse disposto a joga-la sacada abaixo, ele o faria de qualquer forma.
Começou a provocar Fernandes, que reagindo bateu novamente no rosto de LĂgia e a empurrou em direção a sacada.
- Se vocĂȘ nĂŁo a jogar, jogo eu - disse o Fernandes, jĂĄ com a roupa toda encharcada pelo suor.
- VocĂȘ nĂŁo tem coragem, Ă© um fraco!
- NĂŁo me provoque doutorzinho.
Fernandes empurrou o corpo de LĂgia e apoiou-o a linha da cintura no guarda-corpo da sacada. LĂgia expressava com os olhos o seu desespero. LĂșcio continuava insultando e provocando Fernandes, que tinha as mĂŁos trĂȘmulas, enquanto o seu coração disparava. Uma dor aguda tomou conta do peito do homem, que ainda tentou apertar o gatilho, porĂ©m nĂŁo teve forças e a arma caiu de sua mĂŁo. Seu corpo se precipitou do prĂ©dio levando com ele a bela advogada.
Ouviu-se o som de vidro quebrado da cobertura do primeiro pavimento do prĂ©dio que se projetava em direção Ă rua. LĂșcio desesperou-se. Agachou-se, quando jĂĄ em prantos, ouviu gemidos de dor que vinham do lado de fora. Correu e viu LĂgia presa ao mastro de bandeira instalado em frente ao prĂ©dio onde as mĂŁos dela, amarradas, encontraram um ponto para se prender.
JĂĄ nos braços de LĂșcio e com alguns ossos quebrados, LĂgia disse:
- Me lembre de trocar a fechadura!
- Precisaremos mais do que isto. Quando prendermos Mendozza novamente, lembre-me de agradece-lo por me trazer até aqui tão råpido.
Texto selecionado para compor a Antologia Policial Ă brasileira organizada pela Editora Illuminare - 2017.
Adnelson Campos
22/07/2018