Jussara Lucena, escritora

Textos

O rangido

A cena do homem morto, pendurado pelo pescoço não lhe saia da cabeça. Sempre tentou entender porque alguém faria aquilo com a própria vida. Ainda sentia o cheiro do corpo em decomposição, mesmo passados mais de cinquenta anos desde o dia em que, fugindo do irmão mais velho, pulou a cerca e enroscou-se nos pés do cadáver do velho Kowalski.
Embora não percebesse, o menino brincalhão passou por momentos de tristeza profunda e de instabilidade emocional depois daquilo. Mesmo assim, cultivou por toda a vida muitos amigos. Colegas de pescaria, de carteado e de aventuras pela mata com seu velho Jeep 1953. Era um sujeito disponível para qualquer problema. Sabia ouvir e contar boas histórias, acompanhadas por uma boa bebida. Assim eram as noites de Natal e de Ano Novo também.
Porém, um dos momentos mais difíceis da sua vida chegou: a aposentadoria. Seus melhores amigos sempre estiveram na oficina de automóveis. Tentaria manter a atividade na garagem de casa, seu compromisso mais sério fora firmado com a graxa, o casamento ficaria num segundo plano.
Tudo ia bem até que a esposa reuniu os três filhos e falou do seu desejo de mudar-se para mais próximo da família dela. Era um lugar tranquilo, uma pequena vila entre as montanhas. Fazia um bocado de frio no inverno, porém muito agradável no restante do ano. Ela poderia ajudar as irmãs, uma delas adoentada. Havia outras casas à venda, venderiam alguns dos bens, comprariam algumas casas na vila e alugariam, até que os filhos pudessem mudar para lá também. Os dois filhos mais velhos estavam começando a formar suas próprias famílias e acharam uma boa ideia. Convenceram o pai a aceitar.
Logo que chegou ao lugar, Otto achou que havia algo errado. O rangido do portão quase caído na entrada da vila lhe causava uma dor. Nas noites que se seguiram, o velho portão completava o quadro de insônia de Otto. Por várias vezes tentou consertá-lo, mas ele teimava em deformar-se novamente. Tentou arrancá-lo, mas o velho Sam, o sujeito que construiu a vila não permitia.
No começo, a vida na vila foi um pouco mais fácil. Os concunhados, também aposentados, passavam boa parte do dia conversando ou jogando. Abusavam um pouco da bebida e do fumo.
No primeiro ano, todos os filhos vieram para as festas de fim de ano e prometeram que logo mudariam para lá. As casas ficaram mobiliadas e desabitadas por dois anos. Nos cinco anos seguintes, foram alugadas, mas ninguém ficava lá por muito tempo. Todos que de lá saiam diziam que era impossível ser feliz naquele lugar. Os filhos venderam as casas, ficaram com o dinheiro e se afastaram.
Os membros mais velhos da família da mulher foram morrendo e os mais novos mudando de lá. Os novos vizinhos eram estranhos e pouco amigáveis. Acabaram ficando sozinhos na casa quando a filha mais nova, numa de suas viagens para a universidade, morreu num acidente de trânsito.
Otto passou a culpar a mulher pelos seus infortúnios e pela solidão que o castigava. Pensava em abandonar tudo, voltar para sua terra. As datas comemorativas e festivas só serviam para acentuar ainda mais a angústia e a sensação de abandono.
Num período de chuvas, Otto percebeu um problema no telhado e subiu ao sótão para consertar. Ele detestava o lugar, que por isso sempre foi empoeirado e desorganizado. Removeu algumas tábuas e encontrou uma pequena caixa. Dentro dela, um antigo revólver 38 e algumas balas. Desde o tempo no exército não manuseava um daqueles mas sabia como fazer a manutenção de um. A mulher tinha pavor de armas, faria a limpeza no próprio sótão, longe dos olhos dela.
Removendo um pouco da sujeira da arma, percebeu na empunhadura uma inscrição gravada. Tremeu quando viu o nome do antigo proprietário: Kowalski. Teve a sensação que, acima dele, pendurado na viga central estava o seu velho fantasma e o sótão pareceu cheirar a morte. Desceu rapidamente, nunca mais voltou lá. A arma, escondeu-a num galpão nos fundos da casa.
Nas noites que se seguiram, além do rangido do portão que o assombrava, agora o velho Kowalski lhe tirava o sono também. Maldizia o dia em que a mulher o convencera a mudar para lá.
Mais um Natal chegou e nem ao menos a mensagem dos filhos pelo telefone celular veio. Fazia muito frio. Uma nevasca cobriu quase tudo. Pelo menos algo de bom acontecera com a chegada da neve: o portão da entrada da vila estava preso e não rangia, a noite seria mais tranquila.
Para lembrar a data, a mulher preparou alguma comida, colocou a toalha com motivos natalinos na mesa, acendeu algumas velas e reforçou o fogo na lareira. Insistiu para que Otto ouvisse uma história, contada de um velho livro que lia para os filhos na época do Natal. O homem queria, mas não conseguia chorar. O sentimento era o de revolta. Via na mulher o seu pior inimigo e o sentimento de raiva crescia ainda mais.
Perto da meia noite, a mulher lhe entregou um pacote e insistiu que ele abrisse. Ele olhou o par de meias tricotadas em lã vermelha com indiferença. Desculpou-se por não ter um para retribuir. Ela lhe ofereceu uma caneca de chocolate quente, ele preferiu uma dose de uísque.
A mulher foi deitar. Otto disse que iria em seguida e sentou-se mais um pouco no sofá. Cansado, suas pálpebras se fecharam para logo em seguida abrirem assustadas. Não era possível, ele ouvia o rangido do portão. Uma dor insuportável tomou conta de sua cabeça. Ele precisava acabar com a fonte da sua angústia. Apanhou a arma que havia limpado pela manhã, carregou-a lentamente.
As luzes da árvore natalina iluminavam a porta de entrada do quarto do casal. Otto surgiu com um sorriso no rosto e o colorido das luzes modificavam a sua dentição. Os olhos também brilhavam. Ele empunhou a arma e chamou:
- Olhe para mim, minha velha!
Ela, assustada, sentou-se na cama, de sua boca não saia uma só palavra.
- O velho Kowalski lhe deseja um Feliz Natal! – disse Otto, quase que gargalhando.
Redirecionou a arma para a própria cabeça, apertou o gatilho e espalhou massa encefálica na cortina branca que cobria a janela e boa parte da parede do quarto.

Texto selecionado para compor a Antologia Contos de um Natal sem Luz, vol. 4, organizado por Rô Mierling e editado pela Illuminare.

Adnelson Campos
22/07/2018

 

 

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