Jussara Lucena, escritora

Textos

Chamas

Estamos próximo do horário marcado. Meu sobretudo de lã pouco me protege do frio. Não deveria ter esquecido o gorro em casa, talvez um boné com protetor de orelhas fosse ainda melhor, pois as minhas parecem congelar com o vento frio que sopra por debaixo do viaduto da velha linha de trem, próxima da antiga Estação Ferroviária de Curitiba. Na madrugada, poucas pessoas circulam nesta região da cidade, que parece esconder alguns de seus fantasmas. Finalmente vou encontrá-lo, depois desses mais de trinta anos de buscas por respostas. Este trabalho obsessivo tem roubado grande parte do meu tempo.
Acho que vou caminhar um pouco, meus pés também estão gelados, parecem queimar. Preciso encontrar uma bebida quente. A porta como ele disse, não abrirá antes dos cinco minutos da hora marcada.
Enquanto tento engolir o café com gosto de queimado e observo o homem bêbado que conversa com a prostituta, lembro que numa outra madrugada fria, no último dia de junho de 1951, acordei encharcado pelo suor, após um pesadelo. Nele uma velha senhora descansava sentada em sua cadeira enquanto examinava uma pequena caixa com fotografias, recortes de jornal e alguns objetos. Falava sozinha, como quem comenta as lembranças que cada um dos objetos lhe trazia à mente. Algumas vezes sorria, em outras algumas lágrimas corriam sobre sua face. Levantou e colocou a caixa próxima da lareira. Voltou à cadeira, colocou as mãos sobre os braços do móvel e iniciou um processo de concentração. Fechou os olhos. Parecia controlar cuidadosamente os movimentos de respiração.
De repente, uma luz que alternava tons de azul e verde, pareceu surgir de seu peito e em poucos segundos transformou-se em uma bola de fogo. Apesar do aparente calor das chamas ela não esboçou reação e rapidamente seu corpo desapareceu.
Era como se eu estivesse lá e antes que pudesse sentir em meu corpo as ondas de calor acordei, assustado.
Não consegui entender o significado do sonho até que três dias depois, lendo o jornal me deparei com a reportagem da estranha morte de uma senhora americana de 67 anos. Os restos carbonizados de suas roupas foram encontrados na cadeira em que ela estava sentada.
A polícia arrombou a casa e não encontrou nada mais do que seus sapatos e uma fina corrente. Não havia sinais de fogo em qualquer outro local da casa. Ninguém entendeu como um corpo humano pudesse ter sido destruído e o fogo confinado a uma área tão pequena. A mobília da sala nem mesmo estava chamuscada ou marcada pela fumaça.
A matéria foi finalizada com a afirmação de que muitos outros casos de combustão humana espontânea haviam sido investigados por cientistas, mas não havia nenhuma teoria plausível. Pessoas repentinamente se incineravam, algumas vezes na frente de outras pessoas.
Era a descrição do meu sonho! Algo me intrigava: por que ela não reagiu às chamas? Desde então me dediquei a pesquisar o fenômeno.
A possibilidade de que um corpo humano entrasse em combustão de forma espontânea seria remota, por ser formado principalmente por água. Na sua composição também há metano e gordura, porém, uma cremação exige altas temperaturas, superiores a 900°C, para que possa transformado em cinzas. Alguns pesquisadores acreditavam na teoria do “efeito pavio” onde as roupas da vítima ficam encharcadas com a própria gordura e funcionam como um pavio de vela e um tipo raro de descarga elétrica estática iniciaria a ignição. Havia também explicações paranormais, outras naturais, porém nada conclusivo.
Está quase na hora, será melhor seguir até lá. A ansiedade agora é maior. Me distanciei bastante do local. Na volta, me deparei com um grande número de moradores de rua. Alguns se amontoam embaixo das marquises para espantar o frio. Outros queimam papel e madeira em latões. O efeito pavio não parece justificar uma combustão espontânea. Essas pessoas seriam sérias candidatas a virar cinzas.
A porta do velho edifício está aberta e no final do hall de entrada, sob uma luz tênue, há um antigo elevador com a porta protegida por uma pantográfica metálica. Foram alguns longos segundos para que o lento equipamento chegasse até o oitavo andar.
No corredor escuro esforcei-me para localizar o número 802. Bati à porta, estava aberta, entrei e percebi a presença de um homem parado em frente da janela da sala que dava para a avenida em frente. O ambiente não permitia mais visão do que a rua lá fora e que agora estava coberta por uma espessa neblina, típica do inverno da capital paranaense.
Ele virou-se lentamente, cumprimentou-me a distância e recomendou que me sentasse. Aparentava 80 anos de idade, cabelos grisalhos, bem penteados. Da altura de seus 1,80 metros ele parecia fitar-me friamente, embora a pouca iluminação do ambiente não me permitisse perceber a cor de seus olhos. Vestia um blusão de lã vermelho e uma calça jeans azul. Não portava qualquer adorno como anel ou mesmo um relógio de pulso. Os bolsos pareciam vazios, a não ser pelo contorno de um lenço no bolso direito.
Disse ele imaginar que eu estava muito curioso com tudo que eu descobrira, ou melhor, com todas as questões ainda sem resposta. Antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa ele continuou sua fala e não esperava respostas, parecia apenas querer colocar dúvidas em minha cabeça, muitas além das que eu já tinha.
Dizia que no Universo há muitos planos e muitas formas de vida, modos de ação e de contenção da energia cósmica. Seres como ele somente emprestavam a forma humana para que pudessem realizar a sua missão. Comparou este tempo de passagem pela Terra como uma lâmpada elétrica que possui certo número de horas de vida útil. Chegado o seu fim, se apaga e a energia que ali se concentrava acabava ocupando outro lugar, outro espaço, num outro plano.
Ele pediu que eu o ouvisse atentamente, descreveria a minha missão dali em diante. Falou por quase três horas sobre as experiências acumuladas. Esqueci o frio, não vi o tempo passar. Ao final, me entregou um caderno com anotações e uma lista de telefones e endereços de seres iguais a ele, iguais a mim. “Agora chegou a minha vez”, disse ele com voz suave.
Estendeu-me a mão e uma espécie de aura cobriu nossos corpos, por um breve momento. Me pediu que eu seguisse meu caminho e que não mais voltasse ali.
Procurei a porta e desci. Os primeiros sinais de luminosidade começavam a surgir. Homens começavam a varrer as ruas e as marquises eram desocupadas a medida que o fluxo de pedestres e veículos começava a aumentar. Atravessei a rua e já do outro lado procurei a janela da sala do oitavo andar. Percebi uma forte luz azul que irradiava do mesmo local onde ele estava. Voltei correndo, subindo rapidamente os degraus e cheguei ofegante ao andar. A porta ainda estava aberta.
Já no corredor senti o odor adocicado da fumaça. As luzes azuis davam lugar a uma chama que alternava entre o verde, o laranja e o vermelho. Havia apenas silêncio, nem ondas de calor se podia ver, ouvir ou sentir. Ao final, um clarão e um flash de luz azul que se deslocou rumo ao infinito. Meu amigo voltou para casa, pensei.
Sai de lá rapidamente, não entenderiam minha presença no local. No voo procurei uma poltrona isolada, terminei de ler as anotações do caderno. Na parte interior da contracapa encontrei, numa aba plástica, um pequeno aparelho eletrônico, um misto de cartão com tela de televisão. Não havia algo parecido nesta metade da década de 1980. Havia também algo similar a um ponto de ouvido. Coloquei-o e liguei o aparelho eletrônico. Na pequena tela surgiram cenas da Terra, feitas desde as eras mais primitivas. Também havia imagens de outros lugares do Universo e explanações de suas ligações com a Terra.
Personalidades que eu conhecera somente nos livros de história ou em quadros pendurados em museus agora falavam comigo e explicavam os fatos como que remontando um quebra-cabeças. As informações contidas naquele dispositivo poderiam mudar a história do mundo. Era minha obrigação preservá-las.
Eu ainda teria muita coisa para aprender e ensinar, até me materializar em algum outro ponto do Universo ou ter que deixar a minha consciência migrar para um novo plano.
Como eu poderia influenciar o futuro se eu sabia que ele já existia? Talvez as respostas começassem a chegar, pois o pequeno aparelho vibrava em minha mão e na tela colorida uma mensagem: “chamada em andamento”. O texto sobrepunha a imagem do homem que há pouco eu havia encontrado num velho apartamento em Curitiba e que eu julgava estivesse morto.

Adnelson Campos
13/08/2019

 

 

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