Jussara Lucena, escritora

Textos

A perfumista

A rua em frente ao prédio estava tomada pela multidão. Os policiais e seus apitos tentavam controlar o trânsito confuso, justo num dos horários de maior movimento no centro da cidade. Curioso, rompi as barreiras formadas para observar o que acontecia. “Um homem acabou de saltar de cima daquele prédio!” – me disse uma senhora ainda assustada. Um arrepio tomou conta de todo o meu corpo. Não, não podia ser.
O corpo ainda não estava encoberto, o rosto desfigurado, mas olhando para a mão direita reconheci o anel na mão de Alfredo. Olhei para minha mão, como que redesenhando a gravura do leão estampado num anel similar. No dele o tigre. Compramos juntos, logo que saímos da faculdade. Compromisso assumido de uma eterna amizade.
Tentei tocar o corpo, o policial não permitiu.
– Conhece o sujeito? – me perguntou o homem.
– Sim, foi meu sócio durante alguns anos. É Alfredo Dantas, diretor-presidente da empresa proprietária do prédio em frente, de onde ele provavelmente deve ter se jogado. Eu tinha uma reunião marcada com ele logo mais.
– Ou sido empurrado! – sugeriu.
Quem o jogaria de lá? – pensei, não acreditando no que me veio à mente.
– Preciso anotar o seu nome – Abordou-me um sujeito me apresentando o distintivo da Polícia Civil, depois dele trocar palavras com o policial que isolava a área e me impedira de aproximar-me de Alfredo.
– Pois não. Alberto Castelli – Entreguei-lhe um cartão.
Pensei em Cláudia. Será que ela já tinha ideia do ocorrido? Ou estaria diretamente envolvida com o fato ou contratado alguém para fazer o serviço? Apanhei o telefone e liguei. Como resposta, o alerta de telefone desligado ou fora de área. Passei uma mensagem pedindo que me ligasse assim que possível. Ainda existia a possibilidade de que ela não fizesse parte daquilo.
Depois comecei a me perguntar se eu, de alguma forma, não havia contribuído para o possível suicídio de meu amigo. Não tive coragem de entrar no prédio. Fui até uma cafeteria, perto dali. Nós dois costumávamos passar por lá antes do trabalho, rotina quebrada logo depois do casamento dele com Cláudia.
Lembrei do primeiro dia que os vi juntos, numa celebração de virada de ano. A morena de corpo bronzeado, cabelos longos e de fascinantes olhos verdes. Trajava um vestido branco, justo e curto que acentuava as belas curvas de seu corpo. Por alguns instantes me ative ao decote do vestido e depois disfarcei.
Quando Alfredo me apresentou para a engenheira química, lhe estendi a mão. Ela não correspondeu ao gesto e apenas sorriu timidamente, mantendo-se indiferente a minha presença. Alfredo, desconcertado, nos disse que teríamos tempo para melhor nos conhecermos.
Pouco tempo depois se casaram. Minha relação com Alfredo passou, daquele momento em diante, a ser mais formal. Não procurei por isso, mas sabia que Cláudia era o motivo do meu distanciamento.
Encontra-los juntos era inevitável, pois eu e Alfredo tínhamos muitos amigos em comum. Cláudia evitava cruzar o olhar com o meu, mas eu não cansava em tentar procurar o dela. A distância eu a observava e parecia que eu podia sentir o cheiro de sua pele, o gosto de sua boca. Eu tentava evitar tais pensamentos, mas não conseguia. Me culpava por isso.
Vários de meus relacionamentos se acabaram nas festas e encontros em que Cláudia estava presente. Minhas companheiras percebiam em meus olhos o que acontecia.
– Por que tanto interesse nela, se ela nem percebe que você existe? Olha para mim, me acha menos interessante do que ela?
Realmente a beleza física de Bruna, a mulher a meu lado era impressionante. Desculpei-me, porém eu e Bruna não voltamos a nos encontrar, pois o que fiz logo em seguida foi voltar a olhar para Cláudia, cuja abertura traseira do vestido e seu movimento deixava à mostra as covinhas de vênus. Aquilo parecia me hipnotizar.
Passei a evitar os locais que Alfredo e Cláudia frequentavam, assim tentei manter um pouco da amizade que ainda nos restava.
Certo dia, havia muito trabalho a ser feito e fiquei até mais tarde no trabalho. As luzes do edifício já haviam sido reduzidas e eu mantinha a minha sala iluminada. A secretária também não estava, porém percebi passos e o som de saltos de sapato feminino. Talvez dona Sônia tivesse esquecido algo.
Voltei a concentrar-me no relatório. Logo em seguida a porta se abriu. Para minha surpresa ela surgiu na minha frente. Acendeu o abajur na mesa de canto. Apagou as demais luzes da sala. Vestia calça e blusa em couro, completamente coladas ao corpo. Cláudia empurrou minha cadeira para trás, jogou os papéis no chão e sentou-se em minha frente sobre a mesa. Acomodou-se, distanciou uma perna da outra e começou a abrir os botões da blusa. Retirou o sutiã e os seios firmes saltaram até ficarem completamente expostos. Ela pegou a minha mão e colocou no seu seio esquerdo. Depois beijou a palma da minha mão. Levantei-me e ela beijou a minha boca. Tirou a minha gravata, depois a camisa. Afastou-se e abriu o botão da sua calça. Fez algum esforço para começar a retirá-la até deixar a mostra a tatuagem de uma pequena borboleta, logo acima da calcinha branca e cavada. Virou-se de costas, recolocou a calça e se dirigiu até a porta, ainda sem a blusa, que carregava segurando sobre o ombro. Não disse uma única palavra. Antes de fechar a porta por completo, retirou o batom vermelho da bolsa e retocou os lábios, sorriu e se foi.
Não consegui dizer nada também. Minhas pernas tremiam e obriguei-me a sentar na cadeira, sob pena de não resistir. Corri ao banheiro, precisava extravasar o desejo despertado em mim por ela.
Não consegui dormir direito naquela noite. Até então o que aquela mulher havia feito era me ignorar. Eu, agora mais do que nunca, sabia que estava apaixonado por ela. Ainda de manhã eu podia sentir o gosto da boca dela. O cheiro de sua pele e do seu perfume ainda pareciam impregnados na palma de minhas mãos.
Cheguei cedo ao escritório. A primeira pessoa a entrar na minha sala foi Alfredo.
– Esperei por você na cafeteria. Pelo jeito você passou a noite no escritório, não conseguiu terminar o exame dos relatórios?
– É, faltou um pouco, por isso procurei chegar mais cedo – disse eu sem conseguir olhar nos olhos de meu amigo.
Quando Alfredo foi sentar-se na cadeira, em frente à minha mesa, deparou-se com o sutiã.
– Agora está explicada a falta de tempo para os relatórios. Pelo jeito a noite foi longa. O perfume é bom. Até parece o mesmo perfume de Cláudia.
Gelei na cadeira. Abaixei a cabeça e disparei:
– Você o conhece? Sabe qual a marca. Parece um bom presente para uma mulher.
– Não, não sei, mas direi a Cláudia que gostou, ela me dirá qual é.
– Obrigado.
No meio da tarde o alarme do telefone celular notificou a chegada de mensagens. Era Cláudia, passei a responde-los
– Acredita em feitiços? – perguntou-me ela.
– Depois da noite passada comecei a acreditar neles.
– O perfume faz parte, funciona melhor com você do que com Alfredo.
– O que pretende?
– Conquistar você.
– Sabe que já conseguiu – afirmei.
– Uso a química como perfumista. Preciso de dinheiro para começar um negócio. Você sabe que Alfredo é mão fechada. Preciso da sua ajuda.
Apesar de sermos sócios, Alfredo era majoritário. Possuía uma pequena fortuna. Pensei por alguns dias e cheguei à conclusão de que uma ajuda para Cláudia não faria a menor diferença no patrimônio de meu amigo. No fundo o que eu queria mesmo era poder continuar do ponto em que eu e Cláudia paramos naquela noite. Se me perguntassem, antes de conhecer Cláudia se eu faria isso, prejudicar um meu amigo, eu responderia que não, de forma alguma. Porém, arrisquei pagar o preço.
No dia em que fiz a primeira remessa para a conta dela, recebi uma selfie onde a única coisa que Cláudia vestia era uma camisola transparente. Na legenda: “pra você!”. Em seguida, recebi um pacote na minha sala. Abri. Dobrada com muito cuidado havia uma calcinha. Aproximei-a do meu nariz. Era o mesmo perfume. Fiquei completamente enlouquecido.
Inventei uma desculpa e fui até a casa de Alfredo. Ele convidou-me para uma bebida, aceitei. Cláudia serviu, mantendo-se fria. Alfredo pediu licença, precisa muito de um banho. Era a oportunidade que eu precisava.
Quando ouvi o barulho da água do chuveiro caindo, aproximei-me de Cláudia. Ela colocou a mão no meu peito e afastou-me.
– Preciso da senha da conta.
– Mas eu tenho feito as remessas, como combinamos!
– Sim, querido. Só preciso de um pouco mais.
Ela sentou-se do meu lado, ergueu um pouco mais a saia, deixando à mostra grande parte das pernas. Não resisti e fui subindo lentamente minha mão. Ela prendeu-a antes que ela atingisse o meu objetivo.
– A lingerie, mandei hoje à tarde para você – me disse ela, saindo da sala.
Na minha mão, o perfume parecia ainda mais intenso. Ela voltou com um pedaço de papel e caneta. Registrei a senha da conta. Terminei a bebida, escrevi uma mensagem para Alfredo pedindo desculpas pela saída antecipada.
No dia seguinte, logo que acordei me dei conta do que estava fazendo com meu amigo. Viajei, me afastei por alguns dias. Quando voltei, sem muitas explicações pedi a dissolução da sociedade. Alfredo parecia conformado com a situação.
– Sabe, Alberto, não vivo um bom momento com Cláudia. Não consigo olhar mais para a minha mulher. Descobri que ela tem feito vários saques em minha conta. Não sei como descobriu a senha, mas não me importo. Quanto menos falar com ela, melhor. O dinheiro ainda não me faz falta.
– Mas como chegaram a esse ponto?
– Parece loucura, mas tudo começou quando ela trocou o perfume. Insisti para que deixasse de usá-lo, mas parece que o maldito perfume aumenta a sua intensidade a cada dia que passa. Passei a odiá-la e você sabe que ódio nunca foi um sentimento por mim cultivado.
Me afastei dos dois. Comecei um novo negócio. Permaneci distante até a noite passada, quando recebi a ligação de Alfredo. Ele parecia completamente afetado, não dizia coisa com coisa. Não tive tempo para entender o que acontecia. Meu amigo havia chegado ao fim da linha e eu me sentia um pouco culpado por tudo. Devia tê-lo alertado sobre a mulher que tinha ao seu lado. Por outro lado, eu não havia sentido tanto desejo por uma mulher em toda a minha vida como o que sentia por Cláudia. Eu também não conseguiria prejudica-la.
Agora a situação era outra. Alguém havia empurrado o meu amigo de cima daquele edifício, não usando as mãos, talvez hora usando seus encantos, hora seu veneno - concluí.
Eu precisava contar o que eu sabia para a polícia. Faria isso no dia seguinte.
O café esfriou e eu nem consegui encostar os lábios na xícara. Caminhei ainda por um bom tempo.
Cheguei em casa e fui direto para o chuveiro. Tentava debaixo da água arrancar um pouco da minha culpa.
Eu não conseguia sair debaixo da água, até o momento em que pareci ouvir música no lado de fora. Não seria possível. Apressei-me. Saí com o corpo ainda úmido.
Na minha cama, deitada de bruços, completamente nua, estava Cláudia. O cabelo comprido cobria boa parte das costas. Aproximei-me de seu corpo. Um perfume ainda mais inebriante tomava conta do quarto. Aquilo me despertava todo tipo de sentimento, menos raiva ou ódio.

Texto publicado na Coletânea Amor e Ódio da Perse.

Adnelson Campos
26/11/2019

 

 

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