Textos
Festa da Cumeeira
Lembro como se fosse hoje, eu não tinha mais que seis anos. Meu pai dizia que seu sonho era construir uma casa como a de meu avô para abrigar minha mãe, eu e minha irmã mais nova. Sentia orgulho de ter ajudado o pai na construção da casa e aprendido algumas das técnicas trazidas do Velho Continente. Vovô recomendou que agora, com mais recursos, ele fizesse uma melhor, uma casa centenária.
Noutro dia, numa manhã de inverno, saÃmos caminhando para escolher as araucárias e imbuias que seriam cortadas e serradas para dar forma a casa.
O cerne de um dos pinheiros escolhido serviria para o vigamento do telhado. Eu, minha irmã e meu primo demos as mãos e tentamos abraçar a árvore. Só conseguimos a metade da volta. Fiquei com pena da grande árvore. Papai me disse que ela era uma árvore centenária, mãe de muitas daquelas outras que a rodeavam. Pediu que eu não ficasse triste, pois ela seria bem trabalhada e ainda existiria por muito tempo, em forma de casa. Me disse que eu deveria bem conservá-la, já que ela serviria de abrigo e proteção para os descendentes dos Hanisch.
Mais tarde, meu pai pegou um pedaço de papel amarelado e um lápis antigo, dizia ele ter sido fabricado em Nuremberg. Era uma das relÃquias da famÃlia, só usado em ocasiões especiais.
O que no começo pareciam apenas uns rabiscos foram se transformando na figura da nossa casa. Meu pai apontou para mim o local onde seria usada a madeira da velha araucária e ali, na cumeeira, o ponto onde seriam colocados os ramos, no dia da Festa.
Fiquei curioso com a tal festa, pois quando ela acontecesse a casa ainda não estaria pronta. Meu pai me respondeu que o segredo de uma boa casa está na sua estrutura, que nada vale uma pintura, um detalhe de decoração se a base não for sólida, permitindo que a construção rua. Depois que o madeiramento é erguido e se coloca o telhado, uma das fases mais duras da construção já se passou. O telhado armado é a proteção da famÃlia e a abrigará por muitos e muitos anos, conservará a energia e as tradições daqueles que ali viverão. A Festa da Cumeeira também seria uma ocasião para agradecer todos aqueles que ajudariam na construção. Seria mais um dos momentos de confraternização, com muita gente da vizinhança.
No verão seguinte, meu pai já estava preparando, no chão, o madeiramento do telhado e eu já identificava na armação cada detalhe do desenho criado naquele momento raro. Passei por baixo das vigas da base e num retângulo formado eu visitei o espaço do meu futuro quarto. Imaginava a janela voltada para o sol nascente e pendurava numa parede imaginária a viola fabricada pelo meu avô, ganha no meu primeiro aniversário. A casa seria grande o bastante para quinze pessoas.
Depois de alguns dias, eu e meu pai subimos até o telhado e colocamos os ramos na ponta da cumeeira. A festa já podia acontecer. Muita gente passou por lá, todos traziam alguma comida ou bebida. Dançavam, cantavam. Eu percebia no rosto de meus pais toda a alegria pela conquista que se se desenhava. Via nos olhos do meu avô todo o orgulho por ver que o filho aplicara muitos de seus ensinamentos.
Um senhor mais velho, sentou ao meu lado, colocou o braço no meu ombro e abraçando-me falou:
- Agora a casa está protegida, a boa sorte os acompanhará!
O homem me disse que ajudara com as palavras do poema de agradecimento que meu pai declamaria. Afirmou que a vida é como uma poesia, e que cada um de nós é um poeta por natureza. Cada uma de nossas ações, materiais ou não, constrói a nossa obra, afinal, a poesia é o tempero da vida e a vida alimenta a poesia. Assim a obra nunca está acabada, precisa ser revista, reinventada.
As palavras ainda ecoam em meu pensamento e hoje, passados quase noventa anos, contemplo a poesia da natureza e de algumas de nossas obras.
Sinto muito pela decisão do novo proprietário de demolir a antiga casa.
O vento sopra, assoviando por entre as estruturas dela, espalhando pelo mundo o mantra de nossas vidas. Só que amanhã, nunca mais.
Txto publicado na coletânea Saudade sem fim, da Perse.
Adnelson Campos
26/11/2019