Jussara Lucena, escritora

Textos

Fome

Foi durante a minha primeira viagem internacional. Fui salvo quando eu já não tinha mais forças para suportar. Me faltava aquilo que justamente mais sobrava e se desperdiçava, num festival de aromas, sabores e cores que agradavam quase todos ao meu redor, menos a mim.
Não dormi nas semanas que antecederam a viagem. Era o meu primeiro compromisso profissional no exterior. A língua era o primeiro obstáculo. Ei tinha dúvidas de o que eu havia aprendido na escola e com a leitura de alguns poucos textos seriam suficientes para compreender e ser compreendido.
No meu trabalho, de certa forma, eu era reconhecido pela minha capacidade de articulação e pela obtenção de resultados. Não tive como recusar o convite de representar a empresa naquele processo de negociação. Era a minha chance de um novo salto na carreira.
Por horas e horas ensaiei as respostas aos possíveis questionamentos do pessoal da imigração americana. Tive pesadelos onde eu era algemado e deportado para o Brasil. No sonho, com o erro no uso das palavras, confessei um crime e não restou outra alternativa ao oficial que me entrevistava a não ser me colocar num avião de volta, vestindo um uniforme cinza.
O avião estava lotado. Fiquei na coluna do meio, com pessoas em ambos os lados da minha poltrona. No corredor, uma senhora sexagenária que tinha medo de voar. Seu modo de fuga: falar. Eu me sentia cansado e com sono. Era impossível, ela me discorria toda uma vida. Eu já me sentia íntimo de cada um dos seus filhos, sobrinhos e netos.
Quando ela silenciava por alguns segundos e eu tentava fechar meus olhos, ou ela me puxava pelo braço ou acionava o botão chamando a aeromoça e lá vinham as histórias da família ou dos incontáveis remédios os quais ela fazia uso.
Não tive outra opção, senão dormir sentado no vaso sanitário do apertado banheiro do avião. Passei vergonha quando a aeromoça, preocupada com minha falta de resposta, obrigou-se a retirar a trava de segurança e abrir a porta encontrando-me de calças arriadas e babando na parede do recinto.
Primeira parada Miami. Tentei ao máximo não parecer nervoso. Era impossível, tal a quantidade de agentes espalhados pelos corredores do aeroporto. No rosto de cada um eu via a imagem do agente de meu pesadelo me abordando e me dando voz de prisão.
Na fila da imigração, observei com atenção as pessoas à minha frente e o comportamento dos agentes. Percebi que entre eles falavam em espanhol. Ufa! Eu teria uma válvula de escape, caso eu engasgasse no meu pobre inglês.
Chegou a minha vez. Entreguei o passaporte ao homem.
– Good Morning! – cumprimentei-o.
Ele nem ao menos ergueu os olhos.
– How long are you staying? – perguntou ele, olhando fixamente em meus olhos.
– Dieciocho días! – respondi, gastando meu espanhol.
– I don’t speak Spanish. Only English, please.
Pronto, eu o havia desagradado. Uma gota de suor escorria pelas minhas costas.
– Are you brazilian?
– Yes – respondi gaguejando.
– Do you speak Spanish in your country?
– What?
– Whats your language?
– Sorry, I don’t understand your question – sussurei. As palavras ecoavam em minha cabeça e eu não conseguia traduzí-las.
– Do you…Go, go! – sinalizava ele com a mão, me entregando o passaporte carimbado e um cartão com a data de entrada no país.
Me senti aliviado. Fui até o banheiro e dei uma refrescada no rosto. Segui pelo corredor, cruzando com os olhares de outros agentes, até que um deles me pediu o passaporte e o formulário de alfandega.
– Do you have any tobacco?
Paralisei-me. As palavras não saiam de minha boca, nem ao menos para dizer que não havia entendido a minha pergunta.
O sujeito me puxou pelo braço. Fui logo oferecendo-lhe os dois punhos para as algemas.
Ele sorriu e me disse.
– Bom dia! Sou o agente Costa. Só precisamos de algum espaço para que a senhora da cadeira de rodas passe. Quanto a minha pergunta, só queria saber se traz consigo algum tabaco. Há regras específicas sobre a entrada em nosso país.
Eu continuava não entendendo. O rapaz, com a maior paciência do mundo pegou um pedaço de papel e uma caneta e escreveu: calma! Estamos falando português.
Pedi mil desculpas, respondi a pergunta e o homem, sorrindo, me indicou a rota.
Na próxima etapa da viagem, segui para Houston. Desembarquei e senti o ar livre no território americano. Apanhei o ônibus que me levaria até a loja da locadora de automóveis. O banco que restava ficava próxima ao motorista.
Olhando para o motorista, lembrei-me dos filmes de faroeste que eu assistia na adolescência. Trajava calça jeans, cinto de fivela larga, camisa jeans mais clara e uma gravata de cowboy.
O sujeito estava ansioso por conversar. Usava um inglês carregado de sotaque e falava como se eu entendesse cada uma de suas palavras, rapidamente. Quase gritei por socorro, pedindo pela ajuda de meu professor de inglês, um irlandês de fala calma e clara. Eu fazia cara de paisagem e sorria, como quem compreendesse. Nem tive chance de pedir que ele falasse um pouco mais devagar. Ao final agradeci: Thanks! See you!
Naquele momento, pensei que eu não deveria ter aceito o convite. Como eu conseguiria me comunicar? Foi mais uma noite insone.
Felizmente, as negociações foram mais fáceis. Na mesa alguns falavam inglês, outros espanhol e ainda havia um italiano. Com todos tinham boa vontade, tudo corria bem.
Minha estadia seria um pouco mais longa, pois eu precisaria visitar algumas instalações. Meu ouvido para o inglês melhorava e eu me sentia mais à vontade a cada dia. Porém, eu passaria por um pesadelo que até então eu não experimentara, mesmo nas minhas noites mal dormidas antes da viagem.
Uma das coisas que eu menos gostava na vida era comer hambúrguer. Pimenta sempre foi insuportável para mim. Mas, quando se tem fome, há limites para a rejeição. Logo aprendi por que em qualquer refeição pedida, naquela região, era acompanhada de um enorme copo com água e muito gelo. Fiquei imaginando como seria na época da Conquista do Oeste americano, com tanta pimenta, pouca água e nenhum gelo. Quem sabe as mortes prematuras fossem causadas pelas hemorroidas constantes dos cowboys.
Não importava se você estava num ambiente agradável como o Hooters ou num rustico pub, sempre havia as mesmas toneladas e toneladas de hamburguers, bacon, batatas fritas. Quando se queria algo mais light, lá vinham as porções de Buffalo Wings ou onion rings.
Decidi tentar fazer a minha própria comida. Tudo que consegui comprar num supermercado foi um pacote de pão-de-forma e uma embalagem com queijo em fatias. Passei alguns dias com a sensação de mastigar isopor com recheio de plástico comestível. Talvez o verdadeiro plástico que separa as fatias do queijo tivesse mais sabor.
Eu não comia, apenas sobrevivia. Restavam mais cinco dias e eu não me reconhecia mais. Minhas mãos andavam trêmulas, as olheiras profundas e era preciso muito esforço para o raciocínio. Nunca poderia imaginar que alguém chegasse ao ponto de quase morrer de fome, mesmo mergulhado num mar de comida e rodeado por pessoas obesas por tanto comer.
Certa manhã, peguei o carro em direção a League City, depois de tentar tomar um café tão fraco que mal conseguia sair da máquina e ter rejeitado uma porção de panquecas com melado. Participei de uma reunião pouco produtiva, pois eu tinha muita dificuldade em concentrar-me. Quando cheguei de volta a Houston, já era quase hora do almoço. Me vi perdido, não sabia onde eu estava, o que fazia. Ainda conseguia ouvir o rádio do carro. O som parecia distante, mas eu podia reconhecer Willie Nelson e sua You are always in my mind. A música parecia que iria desaparecer, eu também.
Me obriguei a parar o carro na primeira praça de serviços que encontrei. Me debrucei por sobre o volante e apaguei. Provavelmente eu estava passando por uma crise de hipoglicemia.
Despertei depois de algum tempo. Com dificuldade abri os olhos e olhei para o lado, depois em frente. Mal pude acreditar no que eu via. Numa das placas indicativas das lojas do lugar, em letras garrafais a expressão “brazilian food”.
Reuni um pouco da energia que ainda me restava e empurrei a porta de vidro do lugar. Ao fundo, um aparelho de televisão transmitia um dos capítulos de Avenida Brasil. Quando a garçonete se aproximou, apenas pedi o prato do dia. Eu não consegui ler o cardápio, as letras pareciam borradas.
Sem pensar, pedi uma Coca-cola, esperando pelo grande copo do free-refil. Para minha surpresa, a garota me trouxe uma latinha de 350ml. Despejei no copo e me senti um pouco melhor. Recuperei um pouco da visão e passei a examinar a lata. Todas as inscrições eram em português, de Portugal. Talvez fosse o efeito psicológico, mas o líquido parecia mais saboroso.
Não demorou muito e o meu prato chegou. A visão não poderia ser melhor, o aroma parecia inundar o ambiente. Depois de um bom tempo comendo vegetais crus, os brócolis e a cenoura, ligeiramente cozidos no vapor eram uma visão do paraíso. Uma carne bem preparada. Feijões que não eram doces ou apimentados, fui direto a eles. Os bolinhos, macios, desciam levemente pela minha garganta. Pensei que talvez minha avó trabalhasse na cozinha do restaurante. Quando eu quase acabava com tudo que havia no prato, a garota trazia um outro e eu partia imediatamente ao ataque.
Depois da segunda repetição, pedi um café. Logo ele veio, forte, inebriante. Era tudo que eu precisava. Pedi a garota um cartão do estabelecimento, eu tinha que saber como encontra-lo novamente. Enquanto aguardava, me distraí com a cena onde Carminha chorava, como uma criança e o capítulo se encerrava com cenas da Avenida.
Despertei com as batidas insistentes do policial no vidro do carro. Com esforço, consegui destravar as portas. Tudo escureceu. Depois disso, minha primeira lembrança foi a de estar vestindo um pijama cinza, preso a uma maca de um avião UTI que me levava de volta para casa.
Já em casa, busquei pelo meu arquivo fotográfico. Sim, meu prato favorito existia e era servido em um restaurante das ruas estreitas de Guimarães. Como ele me fez falta naqueles dias em Houston.

Texto publicado na Coletânea Sem fronteiras, da Perse.

Adnelson Campos
26/11/2019

 

 

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