Jussara Lucena, escritora

Textos

Jaguaretê

O Parque estava quase fechando. Pedi que eles fossem adiante enquanto eu fazia mais algumas fotos. O céu exibia um esplêndido azul e o horizonte mudava suas cores, tingindo de amarelo avermelhado a atmosfera e dando um toque especial ao contorno das árvores da densa floresta que abraça as cachoeiras.
Caminhei, parei, tirei mais algumas fotografias. Repeti isto enquanto distraidamente caminhava pelas trilhas. Perdi de vista a minha família e apurei o passo para tentar alcançá-los. O que eu mais temia era encontrar uma onça pelo caminho. Subi alguns degraus e, felizmente, avistei a rodovia, próximo do belo e charmoso Hotel das Cataratas. Havia uma parada logo em frente dele, o último ônibus passaria por ali e então eu os encontraria, no trajeto ou no portal.
Ainda estava muito quente e apertar os passos me deixou cansado e suado. Busquei uma sombra próximo ao ponto do ônibus, pois o sol ainda castigava.
Acomodei-me no gramado, conferi algumas fotos na câmera, depois olhei ao redor. Tudo estava muito silencioso, mais do que o normal. Passaram-se alguns minutos e nenhum veículo circulava pela estrada. Olhei para o relógio e os ponteiros estavam parados. Talvez eu não tivesse percebido o tempo passar, perdendo o ônibus. Esperei. Ao menos a segurança do parque ou algum trabalhador deveria passar por ali. Se não, eu poderia ir até o hotel e pedir ajuda.
Estranhamente, no hotel não havia movimento. Nem a brisa parecia soprar.
Em meio a mata, comecei a ouvir alguns roncos. Os sons estavam cada vez mais próximos, até que ouvi um esturro muito forte. Inacreditavelmente eu parecia compreendê-los: uma espécie de chamado em língua de bicho.
Pensei em correr, mas minhas pernas permaneciam imóveis. Parada, a um metro de distância, uma imponente onça-pintada parecia me observar e sentir o meu cheiro. Ficou ali, por alguns longos e intermináveis minutos. Se pudesse, eu correria. Muitos momentos de minha vida passaram pela minha cabeça, como dizem acontecer antes da chegada do fim. Fechei os olhos e comecei a rezar. Já fazia um bom tempo que eu não o fazia.
Mas o que aconteceu é que, mentalmente, eu fazia uma espécie de súplica numa língua estranha para mim, a não ser por algumas poucas palavras.
Quando parei, senti uma pata forte e pesada tocar o meu peito. Abri os olhos no exato momento em que a onça terminava sua transformação e diante de mim surgia um velho índio, de face enrugada, olhar firme e coluna curvada.
– Não tenha medo, Jaguaretê.
Por algum tempo tentei falar, mas nada saia de minha boca. Até que consegui:
– Como não ter medo de um jaguaretê?
– Jaguaretê, você!
– Meu nome é Pedro. O seu é Jaguaretê?
– Nós somos jaguaretê – respondeu-me o velho.
O silêncio foi quebrado pelo som de uma cigarra.
– Nnhakyrã, está mais estridente, já está quase na hora.
– Na hora de quê? – questionei.
– Che kane’õ – estou cansado. Minha jornada está no fim. Guaracy se prepara para o sono e em pouco tempo Jaci emprestará seu brilho às águas trovejantes do Iguaçu. Por algum tempo perceberemos o som da itaipu como nunca antes. A noite ficará silenciosa e antes que Jaci surja, os Urissanê serão os únicos a iluminar a região. Será ouvido o rugido dos jaguaretê que guardam estas matas e águas. Antes, terei me juntado ao rio. Serei eternizado pelo ciclo das águas.
Por um instante pensei que fosse brincadeira, uma das atrações do Parque.
– Puxa! Muito bem bolada a sua brincadeira. Não sei como não borrei as calças. A onça que usaram foi bem adestrada.
– Escute com atenção, faça como Aondê, a velha coruja. Tenho pouco tempo de vida na forma de guaraníi. Quando avaetê, meu nome é Piatã, você Piatã agora, como Pedro, como pedra, só que mais forte.
Então, ele passou a relatar que há séculos guardava as terras. Não sabia dizer ao certo desde quando, mas fora, com certeza, depois da transformação das cachoeiras, quando Mboi perseguia Naipi e Tarobá, como nas histórias contadas pelos caingangues. Afirmou que no dia em que não houvessem mais onças seria sinal de que também não haveria mais florestas, as águas secariam e tudo se tornaria deserto. A falha geológica, onde hoje estavam a quedas d’água, seriam apenas uma fenda, um cânion silencioso.
Também disse que eu não estava sozinho, pois havia muitas onças-pintadas espalhadas nas duas margens do rio. Nem todas podiam se transformar em homem, mas todas tinham o espírito da guarda, da proteção do lugar.
Percebendo sua real intenção de que eu o substituísse e sentindo em meu coração que isto iria acontecer, insisti em que eu não podia, pois não era índio, nem bicho. Piatã me respondeu que a sua forma de índio, quando só índios existiam, antes dos espanhóis chefiados por Cabeza de Vaca chegarem ao lugar. Agora, o jaguaretê guia poderia escolher a forma conhecida dos homens de todas as partes do mundo, que respiravam das águas úmidas das cachoeiras.
– Mas porque eu fui escolhido?
– Veja o sinal, Kamé, jaguaretê é Kamé. – Apontava para uma das manchas em meu braço, que eu considerava apenas de nascença.
Eu não entendia muito bem o que acontecia, mas uma voz interna me chamava e pedia que eu aceitasse a minha sina. Eu não controlava os meus atos.
O velho sorriu, tocou com sua mão novamente meu peito e despediu-se:
– Mba’éichapa nde pyhare. Aguyje.
– ¡Buenas noches! – respondi, percebendo os primeiros sinais do escurecer e que a língua, para os bichos é universal.
Eu o observa distanciando-se na trilha. Seu corpo foi envolto em uma bruma como as formadas nas águas das cataratas, seu corpo se liquefez e escorreu pela encosta. Eu, continuava inerte.
Quando me dei conta, estava apoiado sobre quatro patas e começava a perceber os odores do entorno, como nunca. Tudo voltou a ganhar movimentos. Minha audição, mais acurada, me alertou quanto a um grupo que se aproximava.
Apressadamente, minha família e alguns agentes de segurança vinham na minha direção. Quando perceberam a minha presença, pararam imediatamente. O homem de uniforme pediu que não se movessem, enquanto falava ao rádio.
Minha intenção era a de correr em direção a eles, abraçar a todos, mas quando iniciei meus movimentos, minha filha gritou em desespero.
Uma viatura chegou e outro homem uniformizado desceu com uma arma na mão. Corri em direção a mata. Ainda espreitei entre a vegetação. Seria a última vez que eu veria aqueles que amei quando homem.
A noite caiu, os vagalumes começavam a iluminar a área com sua luz tênue. O silêncio pareceu tomar conta de tudo. Eu observava as águas que caiam. Rugi o mais alto que pude. Em resposta, ouvi esturros de jaguaretês espalhados pela mata, primeiro respondendo individualmente, depois fizemos um só coro.
Eu sabia onde os encontrar. Comecei a minha ronda pela mata, enquanto a Lua-cheia emprestava seus raios para iluminar as cachoeiras.
– Pai, eu vou poder me transformar em homem também, ser como meus irmãos?
– Quem sabe um dia, meu pequeno jaguaretê!

Texto vencedor do Concurso Cataratas 2020, organizado por Eduardo Galeano

Adnelson Campos
20/11/2020

 

 

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