Jussara Lucena, escritora

Textos

Nevasca

Foi muita sorte sobreviver a toda esta neve. Meu cavalo não. A velha carroça abandonada me serviu de abrigo nas primeiras horas. Chegar ao Armazém da Minie era tudo o que eu queria. Porém, eu não poderia imaginar o que eu encontraria no lugar.
Ainda nevava muito, quando cheguei. Tive que arriscar a caminhada, eu não sobreviveria por muito tempo sem comida e água. Embora abrigados, os que encontrei tiveram menos sorte. Posso repetir esta história mil vezes, mas nem todos por esse lado do Wyoming acreditariam na cena bizarra que visualizei.
Sempre odiei caçadores de recompensa. Também não gosto de foras da lei, mas meu pai, injustiçado, foi um deles, perseguido até levar um tiro pelas costas quando cortava lenha nos fundos de nossa casa. Ele morreu nos meus braços, enquanto seu sangue se esvaia. Depois, o sujeito colocou-o sobre um cavalo, jogou-me uma moeda e se foi. Eu era apenas um menino de oito anos, já sem mãe. Guardei o dólar de prata comigo.
Quando empurrei a porta, ainda havia um pouco do calor do fogo e um resto de café no bule. O líquido morno me deu um pouco mais de forças. Voltei a acender o fogo. Aos poucos consegui perceber com mais de clareza o cenário de horror e os ruídos ao redor.
O homem negro ainda respirava, sobre a cama de lençóis encharcados de sangue. Teve apenas força para me entregar alguns papéis, dentre os quais uma carta assinada por Abraham Lincoln. Era um caçador de recompensas, o velho Major Marquis Warren. Uma lenda da guerra entre o Norte e o Sul. Para mim, apenas um caçador de recompensas, como o que matou meu pai. Peguei a pistola do sujeito ao lado, apontei. Ele morreu antes. Atirei mesmo assim. Ver seus miolos na parede não aplacou meu ódio por sujeitos como ele.
O sujeito ao lado de Warren tinha um relógio no bolso. Christopher Mannix: era o nome gravado nele. Então o esperado Xerife de Red Rock também estava morto.
Outro homem, de braço arrancado, guardava os papéis de Daisy Domergue, a irmã de Jody Domergue, chefe do bando que ameaçava Red Rock. O carrasco John Ruth falhara em sua missão.
Daisy ainda pendia na corda, de olhos esbugalhados. Os outros, não sei quem são. Não sobrou muito da cabeça de um deles. O fedor de corpos em decomposição tomaria conta do lugar.
Sentei-me, fiz um café novo e aproveitei um pouco do cozido que sobrara na panela, enquanto esperava pelo fim da nevasca. Dormi por umas quatro horas e acordei com o silêncio do tempo lá fora. Incrivelmente o céu limpou e era possível até ver o topo das rochosas.
Num primeiro momento só senti nojo de todos que estavam por ali. Minie e seus ajudantes deviam ter tido o mesmo fim de todos. Talvez seus corpos agora estivessem escondidos sob a espessa camada de neve. Não havia nada que eu pudesse fazer. Decidi deixar tudo para trás e seguir para Red Rock.
Fui até a cocheira para escolher um bom cavalo. Avistei a diligência da Butterfiled Overland Stage Co. Eu poderia ganhar algum dinheiro devolvendo-a a seus donos. Sobre o teto dela estavam os corpos dos três sujeitos provavelmente capturados por Warren.
Quando fui remover os corpos, tive um novo pensamento: só eu sabia o quanto sofri depois da morte de meus pais, sendo empurrado de canto em canto e explorado pelos mais velhos. Agora, eu poderia aproveitar o dinheiro da recompensa por todos aqueles bandidos. Já estavam mortos mesmo! Eu não seria propriamente um caçador e sim o coletor das recompensas. Com o dinheiro, talvez eu comprasse uma fazenda bem longe dali.
Enchi a diligência com os corpos, alguns coloquei sobre cavalos, que atrelei à diligência. Quem sabe houvesse recompensa por mais algum deles. Deus me perdoe, mas deixei os corpos de Warren, Ruth, Mannix e do velho com o uniforme ali mesmo. Eu precisava guardar minhas forças para o trajeto, que seria difícil com toda aquela neve.
Quando eu me preparava para subir na diligência e sair, surgiu o homem em seu cavalo. Distraído, não vi que se aproximava. Ele já apontava a Winchester em minha direção.
− Você não se parece nada com B.O., o cocheiro, filho. Quero dar uma olhada no que carrega aí. Não seria a velha Daisy Dormergue, não é?
Era ele, mais velho, mas era ele, o caçador de recompensas que matou meu pai. As palavras não saiam da minha boca, o ódio quase arrancava meu coração do peito. Eu não tive como apanhar minha arma.
− Muito bem, garoto. Obrigado por recolher os meus vinte mil, ou quem sabe mais! Sabe, amaldiçoei a neve por me atrasar. Agora, agradeço o mal tempo, o serviço já está feito. Então, preciso lhe retribuir.
O homem ergueu a arma e colocou a ponta da espingarda próximo da minha testa. Quanto decidiu apertar o gatilho, o peso da neve acumulada fez um dos galhos da árvore que nos encobria cair e assustar o cavalo. O sujeito foi ao chão, batendo a cabeça numa pedra. Ficou desacordado.
Amarrei suas mãos, vendei seus olhos e o amordacei. Apanhei um balde de água. Joguei a água gelada sobre ele, que despertou.
Eu já havia preparado uma forca, num outro galho da mesma árvore, um mais forte, usando a corda que antes enforcara Daisy. Tirei sua venda, apontei uma arma para ele, obriguei que subisse num cavalo. Coloquei a corda em torno do seu pescoço. Apanhei o dólar de prata e mostrei para ele.
− Lembra-se dela?
Amordaçado, ele apenas esboçou um resmungo e se calou.
Tirei a mordaça, coloquei o cano do revólver em sua testa, depois pus a moeda em sua boca. Voltei a colocar a mordaça. Ele manteve o olhar frio do dia em que me despedi de meu pai.
Depois de um tiro, o cavalo partiu em disparada e o caçador de recompensas permaneceu pendurado, enquanto eu partia para Red Rock.
Fiquei com a fama de ladrão de recompensas e sobrevivi aos interessados em meu dinheiro que acreditavam não foi ganho de forma justa. Hoje, meus netos tomam conta da minha agência funerária.
Nunca mais ninguém teve coragem de passar uma noite na estalagem da Minie. A diligência desviou a rota. Dizem que os fantasmas dos odiados gemem nas ruínas implorando por atenção, incluindo o do caçador de recompensas Joe Tarantino.

Texto selecionado para a Coletânea Roteiros Adaptados, promovida pela Editora Persona.

Adnelson Campos
26/03/2022

 

 

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