Jussara Lucena, escritora

Textos

Máscaras

Eu preferia o lado esquerdo da rua. As montanhas nevadas são mais belas vistas de lá. Depois que se casa, não há como se decidir sozinho. Ela se foi e eu continuo morando do mesmo lado da rua dessa vila, lugar que não escolhi para passar os meus dias. Cansado, já não tenho escolha.
Você também, meu caro amigo. Mas você se conforma, aceita qualquer coisa. Está aí, velho e doente, porém teima em viver, insiste em ser feliz. Algumas vezes eu o invejo, outras acho que somos parecidos.
Uma vez meu velho avô me disse, à beira do rio onde buscávamos nossas trutas, que a vida é como um teatro grego, usamos nossas máscaras para representar. Só nós mesmos é que sabemos o que estamos sentindo. Os outros, veem o que permitimos que vejam. Está certo que em alguns casos também veem em nós muita coisa que não percebemos.
Sabe, acho que eu sou uma espécie de palhaço que encontra um pouco de prazer e felicidade ao fazer os outros sorrirem, pensando que talvez gostem dele.
Foi assim que levei a minha vida até aqui, representando, fingindo ser o que não sou, demonstrando sentir o que não sinto. Você tem ideia de quantos Natais como esse eu passei? Nem eu mesmo tenho certeza. Só vi o tempo passar.
Pensei em largar tudo, deixar essa vida para traz. Não tive coragem suficiente para isso. Trabalhei por todos esses anos na mesma loja. Durante a maior parte do ano limpando o chão, as privadas e ao final do ano, vestindo a minha máscara de palhaço, melhor, de Papai Noel.
No começo, a barba e a barriga eram falsas. O tempo se encarregou de me dar novas formas. O que me dificulta os movimentos no dia a dia, porém facilita o trabalho sentado naquela cadeira revestida de veludo cheirando a mofo.
Hoje, quando sai de casa pela manhã e passei por aquele velho portão, decidi que seria a última vez. Não acredita? Pois observe. Aquele maldito Senhor Kreling vai ter que procurar muito para encontrar alguém que faça o que eu fazia por aqueles míseros trocados!
Mas eu fiz o meu trabalho até o último minuto. Essa véspera de Natal parecia não ter fim. Algumas das crianças são educadas. A maioria não. A musculatura não aguentava mais tanto esforço em congelar um sorriso no rosto. Forçar um Ho, ho, ho!
Esse povo não aprende, parece que toda a população desta cidade deixou para comprar um presente nos últimos minutos. Ao final do expediente me senti exausto. Arranquei a fantasia, tirei a máscara. É lógico que eu não usava uma máscara, não faça esta cara de espanto. A roupa, a bota, o gorro, os óculos, tudo compõe a máscara.
Meu avô gostava de ensinar a origem das palavras. No caso da máscara, ele dizia que não sabia ao certo a origem. Se latina, mascus, que significava fantasma ou se árabe, maskharah ou homem disfarçado. Eu acho que eu reúno as duas, um fantasma, disfarçado, vagando por aí, enganando aos outros e a si mesmo.
Sabe, ao final do expediente, o velho Kreling nem me desejou um Feliz Natal! Eu já estava saindo, voltei e o cumprimentei, afinal não sou mal-educado. Meu avô lembrava que é preciso fazer a coisa certa, de forma civilizada. Se a outra parte não o faz, o problema está nela, não em nós.
O que fiz com a roupa? Estava cheirando a mijo de criança. Joguei no latão em frente à loja. Não ficou lá por muito tempo. Quando atravessei a rua, um sujeito malvestido a apanhou, colocou o gorro na cabeça e saiu sorrindo. Tomara que ele tenha mais sorte do que eu tive!
Se estou amargurado? Estou mesmo! Também estou saudoso. Veja, neste pouco tempo que conversamos falei várias vezes no meu avô. O velho foi o único referencial masculino que tive. Meu pai desapareceu num Natal de 1938, eu só tinha dois anos. Para os amigos da escola eu dizia que ele morreu na Segunda Grande Guerra.
Aprendi muita coisa com meu avô. Por isso eu queria muito ter netos, fazer por eles o que meu avô fez por mim. Nem filhos tive! Se eu pudesse, teria doado muitos anos da minha vida para que ele tivesse vivido um pouco mais. Grande sujeito!
Por que essa cara triste? Pensou que eu me esqueceria do seu presente de Natal? Tome velho amigo, um casaco para melhor suportar esse frio. Me desculpe, mas não consegui consertar o sistema de aquecimento.
Venha cá, sente ao meu lado. Eu trouxe uma comidinha também! Está meio fria, mas podemos dividi-la. O vinho é só meu, você já está muito velho para beber. Sabe lá o que aprontaria depois de um gole.
Queria lhe agradecer, velho amigo! Eu não poderia ter melhor companhia nesta noite.
Sim, eu sei que eu também não deveria beber, mas o médico me disse que eu morreria há seis meses. Meu coração teima em bater. O tempo já não faz mais diferença.
Não, não é câncer não, só a velha gastrite atacando de novo. Não se preocupe, aquele sangue de ontem dever ser de algum corte na boca. Agora até que está doendo um pouco mais. Acho que vou cochilar, daqui a pouco é meia-noite.
Boa noite Manfred! Feliz Natal! Você foi o melhor amigo que já tive. Não, não se mexa. Não vê que a alergia está me fazendo derramar lágrimas?
***
– Tem certeza de que é aqui pai? Ainda não entendo por que sair de casa tão cedo num dia frio de Natal como esse.
– Sim, é essa, a rua sem saída com vinte casas. A casa do Albert deve ser aquela ali, do lado direito, com o galo na chaminé. Não consegui dormir esta noite. Ontem, no final do dia, ele educadamente me desejou um Bom Natal! Percebi um ar de despedida em seus olhos. Me dei conta de que não o agradeci uma única vez em todos esses anos.
– Ninguém atende!
– Bata com mais força, filha!
– A porta parece aberta, vamos entrar.
– Eles dormem?
– Não, estão mais gelados que esta casa! Partiram, juntos, ele e o cão.

Texto selecionado para a coletânea "Natal" da Editora Perse em dez/2021.

Adnelson Campos
26/03/2022

 

 

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