A fronteira entre o real e o imaginário

por Jacira Fagundes

Na leitura de textos de alunos que ingressam em oficina, tenho observado o quanto o iniciante em escrita literária tende a se apoiar em fatos reais, vividos em seu cotidiano. Costumo instruí-los que talvez não seja a melhor escolha para um conto, que pretende mais que tudo, valer-se da ficção, aliás, o conto é, por natureza, ficção.

Tenho me detido nestas observações e constatado que muitos escritores de ficção veem a narrar, posteriormente, episódios de suas vidas que acabaram fazendo parte de seus romances. Se não o episódio na íntegra, ao menos parte deles, com outros encaixes e adereços, porém vividos. E ainda vívidos, porque presentes na memória – “como se fosse hoje” – e resistentes ao tempo.

É difícil aquilatar o quanto de imaginário uma cena vivida, no passado, revela de realidade. Passados 20, 30 anos a lembrança é supostamente confiável, em parte. Talvez, no caso de algo traumático ou, em oposição, algo de extremo êxtase, possa ser lembrado em detalhes exclusivamente de realidade.

O quanto de real existe na memória? Ou, o quanto de imaginário a mente consegue alcançar, quando lembra uma cena do passado que traz no bojo, sentimentos e emoções como raiva, medo, nojo, sentimentos estes fortes o suficiente. São estes sentimentos que constituem a dose de inventividade, o elemento de extrema intensidade que carrega a história distante para o agora.

Trata-se da verdade, mas uma verdade mais sentida do que legitimamente vivida. É o trabalho da mente – manter esvanecida a fronteira entre o real e o imaginário. E é propício à ficção apoiar-se neste intermediário. Melhor deixar o real para outros gêneros, como o ensaio, ou o artigo, por exemplo. No texto biográfico, este terá primazia sobre a imaginação, porém, não se mostrará na totalidade pura e simples dos fatos, pois que tornará a leitura maçante e de pouco interesse para quem lê.

Na ficção, a história narrada pode até ter os bastidores repletos de histórias vividas ou presenciadas. Isabel Allende, em sua obra “A soma dos dias”, trata de memórias, mas nem tanto. Em suas reflexões, ela escreve:

Sempre demoro a dar a largada. No começo, a escrita avança aos tropeções, é uma máquina enferrujada, sei que vão transcorrer várias semanas antes que a história comece a esboçar. Qualquer distração espanta a musa da imaginação.

De que se nutre a imaginação? Do que experimentei, das lembranças, do vasto mundo, das pessoas que conheço e também dos seres e vozes que tenho dentro de mim e que me ajudam na viagem de viver e escrever.


Sergio Faraco, numa entrevista em jornal local responde à pergunta sobre o que costuma inspirá-lo para criar seus contos. Diz ele: O escritor escreve sobre o que conhece ou o que, de algum modo, fez parte de sua vida....fazem parte da vida o que ele sente, o que ele vê, o que ele lembra, o que ele ouve. O tabuleiro do escritor é um crisol de experiências plurais. Ele aprende, com o tempo, a esfarinhar estas vidas que sentiu em comunhão, amassando-as com a sua e ainda largando uma pitada de fermento e levedando no forno.

Beleza de interpretação.

A memória vem a ser referência, apoio e busca – uma interpretação global do particular. Para o ficcionista, haverá o momento de afastar-se do fato ou da cena, na tentativa de diluir aquelas experiências em palavras, em relatos relevantes, numa forma de escrita eficaz e sedutora tanto para o escritor quanto, em especial, para seu leitor.

 

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