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Literatura

Justine
Luiz Paulo Faccioli

“Há apenas três coisas que podem ser feitas com uma mulher”, afirmou Clea certa vez. Você pode amá-la, sofrer por ela ou transformá-la em literatura.” Eu fracassava em todas essas categorias de sentimento.

Eis-me aqui diante de Justine sem ainda saber ao certo o que fazer com ela.

Não, peço por favor que não se apressem a me julgar um cronista sem inspiração e metido a engraçadinho, paráfrase de uma versão literária à la Glauber Rocha: nenhuma idéia na cabeça, um teclado à mão, o desastre à vista. Acreditem, faz parte da proposta dividir com o leitor essas minhas impressões. “Impressões”, um termo preciso, posto que a leitura ainda não foi concluída. A de Justine, sim, mas falta o resto. Ou melhor, falta o todo. Explico: Justine é apenas o primeiro de quatro volumes. O próprio autor esclarece na contracapa: este conjunto (...) deve ser lido como uma única obra (...), um subtítulo adequado seria “um continuum de palavras” . Como ele diz, cada um das partes não pode ser lida como peça autônoma. Poder, até pode. Mas fica faltando coisa. Por isso a dúvida agora: o que dizer de Justine? Valendo-me do adágio de Clea, não cometerei a hipocrisia de afirmar que a tenha amado, muito menos sofrido por ela. Ou seja, fechei um livro sem que ele me tenha tocado como esperava que fosse acontecer. Será o caso de acender um cigarro? Transformá-la em literatura também seria uma pretensão descabida: Justine é literatura e, ao lado de seus irmãos de tetralogia, compõe uma obra clássica dos anos 50/60 do século passado. Só me restará então o fracasso?

(Ainda há pouco, cruzei com minha mulher e aproveitei para desfiar a eterna queixa de que não sabia o que escrever — o problema da vez era Justine. Ela, bem mais experiente do que eu nesses assuntos, e talvez já cansada de ouvir sempre a mesma ladainha, não se comoveu. “Sabes, sim”, me disse. “É simples: senta e escreve.” Do começo, me arriscaria eu a acrescentar. Pois bem, que meu conselho valha então para mim mesmo: Da capo! )

Lembro-me de quando pela primeira vez ouvi falar de O Quarteto de Alexandria, do inglês nascido na Índia Lawrence Durrell. Foi na casa do escritor Sergio Faraco, há dez anos ou mais, e pelo comentário dele próprio de que aquela havia sido uma obra fundamental de sua formação. Bastou para que minha curiosidade fosse fisgada. Afinal, é uma espécie de voyeurismo inocente o desejo de conhecer o que nossos escritores diletos lêem, ainda mais quando se trata de algo a que atribuam tamanha importância. Contudo, logo descobri que O Quarteto... não se comprava em livraria. Houve uma edição portuguesa, da Odisséia, que circulou no Brasil na década de 60 e sumiu sem deixar rastro. Não sou freqüentador de sebos, muito menos de pedir livro emprestado. O jeito foi esperar por um milagre, enquanto seguia ouvindo o Faraco, de quando em quando, repetir seu entusiasmo. E a ele vi depois somar-se uma vasta legião de entusiasmados. Compreendi assim que a obra havia arrebatado toda uma geração de leitores.

Em dezembro de 2006, minha mulher e eu finalmente nos deparamos com a edição brasileira de O Quarteto..., recém-lançada pela Ediouro com tradução de Daniel Pellizzari. Decidimos na hora qual seria nosso presente de Natal daquele ano. Só vim a iniciar a leitura exatos doze meses depois, quando também surgiu a idéia de escrever crônicas que tratassem cada qual de um dos quatro livros, e à medida que fossem sendo lidos.

Por isso estou aqui. Justine à frente, fechado e mudo em sua capa de dois tons de bordô que delimitam a foto de um varal de roupas coloridas sob uma luz de fim de tarde. Ou talvez sejam peças à venda num mercado pobre de Alexandria, pois o título não é metafórico: a cidade egípcia é o cenário real do romance. A época, a que antecede a Segunda Grande Guerra. O Quarteto, os personagens que dão título a cada um dos livros. Ainda não sei dos demais, mas Justine não é a única protagonista do volume que leva seu nome e, dos outros três, apenas Mountolive ainda não deu o ar da graça. Mas Clea e Balthazar já apareceram — até aqui, de forma discreta, é verdade. A história vem em primeira pessoa na voz de um aspirante a escritor ainda anônimo (já sei o nome dele, mas não convém agora antecipá-lo, pelo simples fato de esse detalhe ainda não ter aparecido na trama e pode haver um motivo concreto para a omissão).

O livro abre com o narrador auto-exilado numa ilha igualmente anônima, na companhia de uma criança que, desde o início, sabe-se que é filha de Melissa. Numa estrutura in media res, ele resgata a história vivida anos atrás em Alexandria, e o suspense fica por conta de como aquele passado vai se vincular a esse presente. Até aí, nada de novo, mesmo considerando que a obra foi escrita há pouco mais de meio século. Durrell dispensa a cronologia dos fatos para avançar e recuar livremente no tempo. Justifica o narrador:

Minha maior necessidade é registrar as experiências, não na ordem em que ocorreram — pois esse é o papel da história — mas na ordem em que adquiriram significado para mim.

O romance está alicerçado na sobreposição de dois triângulos: o personagem-narrador, sujeito de parcos recursos financeiros, vive com Melissa, bailarina e prostituta, enquanto mantém um caso bastante tumultuado com a judia Justine, esposa do milionário excêntrico Nessim, de quem o primeiro também se aproxima. Além do movimento desses quatro, que domina a ação, outros personagens são trazidos à tona, têm uma participação solo e imergem de volta à obscuridade, um formato que lembra às vezes a rapsódia. Surgem assim o diplomata Pombal, o médico Balthazar, a artista plástica Clea, o escritor Pursewarden, o barbeiro corcunda Mnemjian, e toda uma plêiade de tipos tão exóticos quanto atraentes. Entretanto, a grande protagonista, por mais clichê que possa soar esse tipo de afirmação, é a Alexandria da época em que o romance está ambientado, intenção ali declarada com todas as letras. As evocações da cidade, por sua vez, compõem algumas das mais inspiradas passagens:

Cinco raças, cinco idiomas, uma dúzia de credos: cinco esquadras cortando seus reflexos oleosos nas cercanias do porto. Mas existem mais de cinco sexos, e apenas o grego demótico parece capaz de distingui-los. O sortimento sexual à disposição é desconcertante em sua variedade e abundância. Alexandria nunca seria confundida com um lugar feliz. (...) Lembro que certa vez Nessim afirmou (...) que Alexandria era o grande lugar do amor; origem dos enfermos, dos solitários, dos profetas — enfim, de todos que tiveram seu sexo profundamente ferido.

Como se pôde ver até aqui, o erotismo é elemento-chave na construção desse roman-fleuve na acepção exata do termo. Além do próprio entrecho, que já indica forte motivação sexual, o exotismo descrito no excerto acima — e que aparece logo na segunda página de Justine — sinaliza o tom em que vai prosseguir o discurso.

Durrell tem uma prosa refinada, elegante, mas que talvez soe hoje um pouco antiquada. Talvez o que lhe falte seja apenas o distanciamento no tempo para que seja rompido o limite entre o datado e o eterno. Alguns momentos são de extrema beleza, especialmente as descrições, onde Durrell mostra seu melhor.

Diante de tantas qualidades, por que então Justine não conseguiu me tocar?

Em primeiro lugar, talvez tenha havido de minha parte demasiada expectativa. Imagino que, em seu tempo, O Quarteto... tenha causado um impacto bem maior do que causa agora. Afinal, Durrell antecipou em alguns anos a revolução sexual que só viria explodir no fim da década de 60 — o que prova mais uma vez que a literatura tem sempre um papel vanguardista em relação à cultura. Depois, a organização caótica da narrativa passou, em dado momento, a dispersar minha atenção. Chega uma hora em que belas figuras de linguagem e descrições primorosas tornam-se insuficientes para cativar um leitor que preza uma condução mais segura da história.

Por fim, um deslize dos mais prosaicos (e que deve ser atribuído solidariamente ao tradutor e ao revisor): o trabalho de tradução, competente em sua essência, derrapa de forma desastrosa na colocação dos pronomes, o que acabou interferindo na fruição. Talvez eu seja demais exigente quanto às questões estilísticas, mas o caso aqui envolve erro gramatical, o que o torna intolerável em se tratando de uma das maiores editoras nacionais e de uma publicação havia tanto aguardada. A insistência na ênclise, contrariando muitas vezes o padrão adotado no Brasil para emular o português de além-mar, repercute em construções exóticas como: “Justine estava, enfim, realmente apaixonando-se”, “não ousava permitir-se suspeitar de mim”, “sem condensarem-se numa única qualidade”. Há pelo menos um “ela se inclinou-se” (!). O pior, contudo, é o total desprezo pela mesóclise. Pode ser que eu esteja enganado, mas não encontrei nenhum desses exemplos em todo o livro. Ao contrário, registrei quase duas dezenas de ênclises impossíveis como: “abandonaria-me”, “eu teria-lhe ajudado”, “sentiria-se”, “tornaria-se”, “encarregaria-se de concluí-la”, “pediria-lhe em casamento”, “cristalizaria-se”, e por aí vai. É terrível quando, numa leitura crítica, a caça ao erro disputa lugar com a busca do acerto. Todavia, esses detalhes podem ser facilmente corrigidos nas próximas impressões.

* * *

Desde que O Quarteto de Alexandria aportou aqui em casa, sobre ele escrevi três e-mails ao Faraco. O primeiro, para dar a notícia. O terceiro, depois de terminada a leitura, para confirmar um detalhe do que escrevi lá no começo e que meu leitor não irá por certo adivinhar. O segundo, quando havia vencido perto de cinqüenta páginas e estava ainda fascinado por Justine antes da pequena decepção que conheci logo adiante, para comentar o quanto a obra vinha me agradando até então. Faraco, na sua eterna gentileza, mais uma vez me respondeu de imediato. E sentenciou: “Ainda não viste nada. Quando entra Balthazar, Durrell mata a pau.”

No Faraco eu confio. E, depois daquele e-mail, mal posso esperar para ver.


Publicado no caderno Palavra do Le Monde Diplomatique Brasil, janeiro de 2008

04/06/2008

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  Luiz Paulo Faccioli

LUIZ PAULO FACCIOLI nasceu em Caxias do Sul em 1958 e lá viveu até 1977, quando mudou-se para Porto Alegre, cidade onde mora atualmente. É músico, compositor, juiz Allbreed e Instrutor pela The International Cat Association — TICA. Autor de Elepê (contos, WS Editor, 2000), Estudo das Teclas Pretas (novela, Record, 2004), Cida, a Gata Maravilha (infanto-juvenil, Galera Record, 2008) e Trocando em miúdos (contos, Record, 2008), participou das antologias Porto Alegre: curvas e prazeres (contos eróticos, WS Editor, 2002), Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê Editorial & eraOdito editOra, 2004) e 35 segredos para chegar a lugar nenhum (crônicas, Bertrand Brasil, 2007), entre outras. Integrou o grupo Casa Verde, participando das seis coletâneas lançadas pelo selo entre 2005 e 2008: Fatais, Contos de bolso, Contos de bolsa, Era uma Vez em Porto Alegre, Contos de algibeira e Contos comprimidos. É crítico literário, colunista de literatura da Band News Porto Alegre e colunista do portal Artistas Gaúchos.

lpaulof@terra.com.br
www.luizpaulofaccioli.com
twitter.com/lpfaccioli


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