Luft é nome extremamente conhecido e respeitado aqui no Sul. Antigamente pelo grande gramático e professor, Celso Pedro Luft, hoje muito mais pela carreira literária daquela que foi sua esposa e herdou seu sobrenome: Lya Luft. Lya iniciou como tradutora de inglês e alemão de grandes clássicos como Virginia Wolf e Reiner Maria Rilke e aos 41 anos, em 1980, publicou seu primeiro romance,
As parceiras. Até os anos 2000 manteve uma carreira regular, como a de tantos outros bons nomes da nossa literatura contemporânea: algum espaço na mÃdia, algum estudo acadêmico, grande admiração dos seus pares. Mas com
Perdas e Ganhos, publicado em 2003, Lya alcançou o rarÃssimo posto de autora de
best-sellers e tornou-se uma das mais festejadas escritoras da literatura brasileira. Para ilustrar, naquele ano passou a vender mais que Paulo Coelho.
O sucesso repentino, apesar da carreira sólida, trouxe tudo o que se sabe que trará um sucesso repentino: superexposição na mÃdia, mudança de rumo da sua obra, narizes torcidos. Seus pares já não achavam tão
cult citar Lya, e os crÃticos acusavam-na de ter feito um livro de auto-ajuda, ainda que insistisse em chamá-lo de ficção. Com o tempo Lya trocou de telefone, de
email, tornou-se mais reservada, virou capa de revista semanal, trocou o jornal local, Zero Hora, pela revista que a brindara com capa, procurou evitar holofotes, lançou novos tÃtulos pela Record, livros de crônicas, poesia e até um infantil. Mas precisariam de cinco anos para que voltasse à ficção.
Esse retorno, aguardado e festejado, chega em 2008 com o volume de contos
O silêncio dos amantes (Record, 2008, 160 p.). Amplamente propagandeado aqui em Porto Alegre, tornou-se presente preferido (para quem ainda compra livros de presente) no Dia das Mães e no Dia dos Namorados, mas deve ter deixado muitos filhos, mães, maridos, esposas e namorados surpresos: não parece a mesma autora, decididamente não é o mesmo texto.
Por todo o sucesso dos livros anteriores, naturalmente abre-se o volume de contos à espera da Lya otimista de
Perdas e Ganhos, de
Pensar é transgredir, de suas colunas, da Lya conselheira, da Lya avó, da senhora de cabelos entre loiros e grisalhos a cantar o prazer da idade, da sabedoria, da leitura. E o que temos é exatamente o oposto: uma Lya soturna, pessimista, criando e matando personagens num ritmo trevisânico.
Amantes, em
O silêncio dos amantes, há poucos, e os que existem não vivem bem, odeiam-se calados, cometem violências, vingam-se. Há muitos pais e filhos, há muitos filhos que morrem, alguns que se suicidam. Há velhos, muitos velhos, em geral dependentes, descritos para que deles tenhamos asco, e para tanto não são poupados detalhes escatológicos de uma avó numa clÃnica. E há, sobretudo, seres imaginários como aqueles amigos de infância que algumas crianças cultivam, seres que acompanham as personagens na vida adulta, na velhice, doces fantasmas a compartilhar segredos.
O resultado é um livro pesado, difÃcil de se chegar ao final, um livro que como tantos outros desde Rubem Fonseca coloca a violência nua e crua diante do leitor mas não tem nem o ritmo estético próprio desse gênero nem a ousadia existencial da Clarice de
A hora da estrela. Resta a dor, apenas a dor, a dor do tempo que passa e envelhece os amantes, embrutece os justos, maltrata as gentes.
Exemplar do tom do livro é o próprio conto que dá tÃtulo ao volume, “O silêncio dos amantes”. Nele a narradora, entre ressentida e resignada – como em geral o são as mulheres dos contos – lembra como conheceu Valentim, aquele que agora dorme ao seu lado, o acaso do primeiro encontro e narra com uma ênfase assustadora a tragédia pela qual havia passado seu agora marido:
“(...) Um assaltante arrancou [a grávida] de dentro do carro e a derrubou no chão. Pegou rapidamente bolsa, relógio e celular da moça caÃda na calçada, e entrou no carro. As sacolas de compra ficaram no chão, ao lado dela. Quando já estava arrancando, sem explicação, sem motivo a não ser a alucinação da droga ou a maldade mais primitiva, inclinou-se um pouco para fora, e disparou. Duas vezes, na barriga volumosa. O bebê explodiu junto com as entranhas da mãe. Naquela hora, mataram também a Valentim. (...)”
Note que a grávida não é apenas morta, ela tem suas “entranhas explodidas”, e fica o leitor, e a narradora, e Valentim, sem explicação alguma para a brutalidade da cena, a brutalidade da narrativa. Mais do que isso, na seqüência do conto a narradora conquista o homem mas passa a conviver com o fantasma da grávida que rondaria pela casa “com olhos melancólicos e desesperados”, num sinal evidente que não há espaço sequer para uma transcendentalidade, a tragédia urbana e humana marcariam em definitivo a existência daquela mulher, daquele bebê, daquela narradora. Que conclui, não por acaso, com a singela frase: “a dor faz parte”.
Não é casual que este conto seja o último do livro, que esta frase seja a última do conto, conto e livro que surpreenderão a muitas leitoras, de certo afastarão outras tantas, e talvez seja exatamente essa a intenção de Lya Luft. Ou a de resgatar uma identidade como escritora, ficcionista e contista “respeitada”, ainda que para isso tenha que apavorar leitores acostumados a frases como “Porque o amor, do jeito que pode ser, é o caminho da liberdade e da grandeza – é a nossa única possibilidade de salvação” (“Um tema tão delicado”, em
Pensar e transgredir).
Se melhor ou pior, não cabe a um reles resenhista afirmar. O que talvez mereça reparo é que um escritor precisa ser honesto com seu público mesmo sendo ele formado por leitoras da Veja. Nesse sentido, não precisava a edição trazer o atraente e romântico tÃtulo “O silêncio dos amantes” e muito menos a comercial chamada “da autora de
Perdas e Ganhos”. É outro livro, é quase outra autora. Uma que deve ser guardada bem longe de Paulo Coelho e bem perto de Dalton Trevisan.
Gostei muito da tua Resenha.É muito esclarecedora.Gosto de Lya Luft,mas não li este livro de contos.
Estou lendo de Lya Luft um livro de ensaios,acho que é o último que ela publicou.O tÃtulo do livro é "Múltipla Escolha. Escolha.Estou gostando bastante.Claro que a literatura de Lya não dá para ser comparada com uma Clarice Lispector.
Suely Braga, OSÓRIO RS 20/02/2011 - 23:04
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