O limite entre sanidade e loucura é tênue demais! E claro, discutível
demais! Se o bordão popular anuncia que de médico e louco, todo
mundo tem um pouco, a vida, vivida em toda sua intensidade, produz mesmo sujeitos
dos mais variados: uns que nunca ultrapassam o limite, os que vivem do outro lado
da linha limítrofe e outros tantos que vão e vem dessa fronteira,
que separa os sérios, os criativos, os arrojados, os inventivos, os previsíveis,
os medrosos, os certinhos, os repetidores, os modernos, os antigos, enfim!
Saudável é ser louco de vez em quando! Mesmo que os deuses gregos
tenham sempre punido quem extrapolou a sua medida humana com um comportamento
que vai além do que estava traçado pelo destino, incorrendo em falha
trágica! É a violência contra a ordem social (e contra os
deuses imortais!) que precisa ser domada; é a transgressão que ultrapassando
o metron (a medida humana), instaura a hybris, o desafio.
Mas junto com a loucura (a desmedida) há o êxtase! E quem há
de negar que ele tem seu encanto (apesar de tudo o que pode vir depois)? É
a atitude trágica – e por que não dizer louca? – que
muitas vezes leva à criação! Quantas vezes já nos
deparamos com histórias de mentes brilhantes que só encontraram
a resposta certa, a resolução precisa, o desenlace perfeito, no
extremo do desafio e da loucura?
Para equilibrar o lado trágico da loucura há o riso, o deboche,
a ironia. Essas diferentes modulações da crítica não
são a mesma coisa; elas têm gradações, e, portanto,
motivações e resultados diferentes!
Mas seria o riso sempre mais leve que o trágico? Mesmo o riso que esconde
(ou aponta para) o lado boçal e medíocre do ser humano? O mesquinho,
o sórdido, o digno de pena muitas vezes, mesmo vindo do riso, não
tem leveza nenhuma! Ou quando tem, é o riso que atenuando, provoca a condescendência!
Sempre que se fala de loucura, essas questões ficam voejando (ou vicejando!)
por perto!
As histórias aqui são loucas porque desafiam o corriqueiro, o convencional,
o cotidiano, o imediatamente comprovável... E a autora aproveita o traquejo
com a oralidade (e com o imaginário) para propor o aparecimento de personagens
memoráveis: o homem mais mentiroso do mundo, o mais doído do mundo,
o mais comilão do mundo, o mais feio do mundo, o menor, o mais risonho,
o mais preguiçoso, o mais limpo, o mais velho, o mais indeciso. O superlativo,
trazido pelo “mais” é que funciona como o divisor de águas,
e lança a base da comparação! O mentiroso dentre os mentirosos,
o indeciso dentre os indecisos, o feio dentre os feios, etc. A normalidade de
tais características precisa sempre do exagero para ser engraçada!
Para provocar uma reação! E muitas vezes é o exagero “rocambólico”
que faz a coisa ficar sorridente!
As histórias são alegres e apontam para uma maneira de ver o mundo
de forma mais descontraída! Claro, há a exploração
de aspectos mais positivados e outros nem tanto, de características que
socialmente já vêm acrescidas de uma carga de aprovação:
ser o mais risonho é positivo, ser o mais mentiroso, nem tanto! Ser o mais
limpo é positivo, ser o mais preguiçoso, nem tanto! De qualquer
modo, percebe-se o tom de brincadeira e o convite ao lúdico por traz de
todas as histórias!
Uma dos segredos do humor do livro é o emprego da linguagem enxuta, ou
seja, a exploração de frases curtas e rápidas. Que favorecem
a agilidade e o ritmo da narração!
“Ele não mentia nunca.
Mentira.
Era o homem mais mentiroso do mundo.
Mentia tudo.
Mentia a idade, a altura, o peso.
Mentia o nome, a profissão e o endereço.
(...)”
Além disso, há a exploração também de um
vocabulário com características regionais, como o uso do “daí”
(“daí tinha que comer de novo”; “daí escapava
sequinho”), do “tri” (“sabia dirigir tri bem”),
de “peça” para referir-se a quarto, de “gaitada”,
para gargalhada, e ainda o uso do recém significando “tinha acabado
de” (“uma mulher que recém tinha saído do cabeleireiro”).
Tudo isso reforçando a oralidade do texto escrito!
Os textos apontam ainda, com um certo humor, as hipocrisias sociais, como em
“o homem mais mentiroso do mundo”:
“(...)
Cansou de não saber o que dizer. Ao encontrar uma pessoa ele perguntava:
quer conversar de verdade ou de mentira?
Só que ele percebeu que nem sempre as pessoas queriam conversar de
verdade. Até queriam conversar de verdade, mas não precisava
ser uma verdade tão verdadeira assim.”
“(...)
Então ele resolveu mentir socialmente. Ao senhor careca, dizia que
aquele corte de cabelo lhe caía muito bem.
À visita chata que ia embora, recomendava que voltasse logo”
Mas o grande barato do livro parece ser mesmo o apelo ao nonsense, às
coisas sem sentido, que estariam na raiz da loucura propalada lá no título
do livro. O nonsense tem a ver com o disparate, com o despropositado, que acaba
sendo uma maneira também de humor, como, por exemplo, no conto “o
homem mais doído do mundo”:
“Doía tudo nele. Sempre. Doía até naqueles
lugares que não doem na gente. Doía o cabelo. Doía depois
que acabava o pé, na folguinha do tênis. Doía um palmo
acima da cabeça, onde acabava a altura dele.”
Ou, o disparate da brincadeira de explodir de tanto comer, como no conto “o
homem mais comilão do mundo”:
“(...) Comeu tanto, mas tanto, mas tanto que explodiu. E ainda
dava pra ver aquela bocarra desesperada no chão, procurando os restinhos
de comida”.
O livro todo é uma grande brincadeira. E a autora brinca até
com a possibilidade de uma história ter dois finais, como em “o
homem mais doído do mundo”. E a brincadeira se espalha ainda mais,
fazendo com que em geral, os contos tenham um final surpreendente, fruto do
inesperado, como, por exemplo, em “o homem mais risonho do mundo”:
“Riu tanto,mas tanto, que chorou. Chorou tanto, mas tanto, que
as lágrimas formaram um laguinho. Ele usou seu sorriso como um bote
e saiu pelo mundo rindo sozinho”
Em geral, os contos deste livro são curtos. Escrever contos curtos,
aliás, é uma tendência bastante moderna, que pode nos remeter
ao grande mestre do conto, o escritor russo, Anton Pavlovitch Tchékhov.
E pode, ainda, nos lembrar que nos dias de hoje, apareceu uma outra categoria
de contos, chamada de mini-conto. Aqui, então, obedecendo, quem sabe,
a essa tendência, há contos curtíssimos, como “o menor
homem do mundo”:
“Nasceu o menor homem do mundo. Ele era tão pequeno, tão
pequeno, mas tão pequeno que a única notícia que tivemos
dele foi sobre o seu nascimento. Depois disso, nunca mais foi visto”
Talvez, ainda explorando as tendências da literatura moderna, fosse mais
eficaz guardar para o final do livro o conto “o homem mais velho do mundo”.
Principalmente por sua circularidade, e quando não, por uma escolha estratégica,
já que este é o conto com final, de certa forma, mais lírico
do livro. Encerrar o livro com este conto deixaria a obra, de algum modo, redonda.
A história é a de um nenê, que ao nascer ganha uma ampulheta
de presente. E cada vez que ele gira a ampulheta, ainda na maternidade, o tempo
passa. Ele sai de lá já com cinco anos. Tudo passa rapidamente.
Ele envelhece como num passe de mágica...:
“Até que um dia, o menino mais velho do mundo deixou cair
a ampulheta que havia ganhado do seu pai. Ele olhou lá de cima do seu
metro e oitenta a areia no chão. E, de repente, a areia estava mais
próxima. Mais próxima. Muito mais próxima. Mas tão
próxima, que ele todinho cabia sentado na areia da ampulheta. E o menino
mais velho do mundo voltou a ser bebê. Aliás, o bebê mais
sorridente do mundo, porque começaria tudo de novo, mas agora, ele
já estava ensaiado”.
É um final bonito, e poderia ser melhor ainda, se o livro, por exemplo,
começasse com “o homem mais risonho do mundo”. Aí
sim, o círculo se completava! Ficaria bonito! E essa boniteza poderia,
enfim, minimizar o deslize de “o homem mais preguiçoso do mundo”.
Comete-se ali, um erro! Não faz sentido a narração começar
em terceira pessoa e passar para a primeira pessoa nas três últimas
frases. A tentativa de se brincar com a idéia de que era ele mesmo, no
caso, o próprio preguiçoso, quem estava escrevendo o conto, soa
fora de lugar. Não é mágica como as outras soluções
inusitadas! E fica parecendo uma solução desgastada! Mas isso
é um detalhe!
Falemos das ilustrações! Laura Castilhos é quem cuidou
da linguagem visual. A técnica empregada é nanquim, aguada e corretivo
líquido sobre papel Canson.
Por falar em papel... é mesmo um charme o uso do papel pólen com
os desenhos em tons de marrom. A monocromia tem um bom impacto com as aguadas...
E toda a possibilidade do colorido aparece na capa, dando uma bela idéia
do que seria a edição, se todas as ilustrações fossem
coloridas! A monocromia é um recurso para barateamento da edição
ou é realmente a opção feita pelo ilustrador? Tenho dúvidas!
Outro aspecto técnico que conta à favor da edição
é o espaçamento entre as linhas do texto. Há espaço
entre elas! O texto não está apertado e espremido pra ficar pequeno
e caber em menor número de páginas, pelo contrário! E isso
favorece a leitura!
Raquel Grabauska, que responde pelos textos, é de Ijuí e vive
em Porto, Alegre. Pertence ao grupo de teatro “Cuidado que Mancha”,
e é diretora, dramaturga e atriz. Laura Castilhos, que responde pelas
ilustrações e projeto gráfico - neste quesito, mais o quesito
editoração, há ainda a participação de Camila
Kieling - é professora de desenho do Instituto de Artes da UFRGS e já
ilustrou outros livros do grupo de Raquel. Há, portanto, uma sintonia
entre os trabalhos delas!
E ainda, um comentário final, gerado pelo impacto das vinhetas nas últimas
páginas: há um desfiladeiro, no meio da penúltima página
e uma mala com seus segredos esvoaçantes, querendo sair, no meio da última
página... como se fora uma rabiola de pipa (pandorga, para os gaúchos!),
pronta para sustentar o vôo de quem vai se lançar de mala e cuia
no universo do sonho! É isso, é preciso um tanto de loucura e
insanidade para romper os grilhões da mesmice! Celebremos o livro que
consegue fazer isso! Celebremos a santa loucura deste!
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