Quando
se anunciou o projeto Amores Expressos, em março de 2007, houve choro
e ranger de dentes. Sob a batuta do produtor Rodrigo Teixeira e do escritor
João Paulo Cuenca, foram escalados dezesseis autores brasileiros para
uma experiência logo maldosamente alcunhada de “turismo literário”:
eles todos teriam passagens e diárias pagas para viver por um tempo
em algum endereço vistoso deste nosso vasto planeta e, em cada um deles,
conceber uma história de amor. Os dezesseis romances seriam depois
publicados pela Companhia das Letras. Para garantir um caráter multimÃdia
à empreitada, foi criado um blog para cada autor, com o objetivo de
registrar impressões e histórias de viagem — e dar ao público a
oportunidade de viajar com eles, acompanhando parte de cada processo
de criação. Havia também a expectativa de que as histórias pudessem
mais tarde se prestar a adaptações cinematográficas. A chiadeira
foi geral. Escritores preteridos torceram o nariz, alegando que a escolha
do time havia sido orientada pelo compadrio (o nome do próprio Cuenca
apareceu na lista). A imprensa denunciou que parte dos altos custos
do projeto seria bancada por recursos públicos, via Lei Rouanet, e
tratou o caso como escândalo. Nos blogs pulularam crÃticas e discussões
sem fim, e, como não poderia deixar de ser quando o tema interessa
à comunidade cultural, sobraram farpas e ofensas pessoais para todos
os envolvidos. Passados alguns dias, ninguém mais falou no assunto.
E agora, quase dois anos após, surge lépido e faceiro o primeiro dos
romances, Cordilheira, do paulista Daniel Galera, que
viveu sua experiência criativa em Buenos Aires.
Até
que ponto o “turismo literário” de Galera na vizinha Argentina
tenha sido fundamental à concepção da obra — e este justamente
um dos muitos combustÃveis que alimentaram a controvérsia — é,
arrefecida a celeuma, um dos aspectos que continuam a despertar curiosidade
e que poderiam render páginas e páginas de boa argumentação. E quando
penso em Chico Buarque e seu excelente Budapeste, cenário em
que o autor não havia pisado antes de escrever o romance (não sei
se ele chegou a visitar Budapeste após publicá-lo), a tentação de
enveredar por esse caminho é quase irresistÃvel.
O
fato é que busquei ler Cordilheira sem levar em conta
que ele fazia parte de um projeto maior. Preferi pensar que se tratava
apenas do mais recente trabalho de Galera, autor cuja trajetória acompanho
desde o primeiro livro, para só depois refletir sobre sua relação
com o todo ao qual pertencia. Aliás, uma peça literária que se preze
deve se sustentar como obra autônoma, sem depender de qualquer referência
externa para sobreviver.
Cordilheira
estrutura-se de forma simples e não por isso menos interessante. O
curtÃssimo prólogo e o epÃlogo igualmente enxuto, ambos escritos
em terceira pessoa, servem como uma espécie de moldura à parte mais
substanciosa do romance: nove capÃtulos narrados em primeira pessoa
pela jovem Anita von der Goltz Vianna, autora de um único livro,
Descrições da chuva, que teve ótima repercussão a despeito do
fato de que ela própria tenha passado a desdenhá-lo. Longe de pretender
seguir uma carreira literária por conta desse sucesso inicial, Anita
quer porque quer tornar-se mãe e aproveita a oportunidade do lançamento
de uma versão em espanhol de seu livro em Buenos Aires para pôr fim
à sua relação com Danilo, em cujos planos não há lugar no momento
para a paternidade. Na capital argentina, para onde se muda sem lenço
e sem documento, Anita conhece e se envolve com Holden que, como ela,
também é autor de um único e renegado livro. Holden, por sua vez,
faz parte de uma confraria de desconhecidos e misteriosos escritores
que mantêm códigos e rituais bastante exóticos. A trama vai se adensando,
com algum suspense e muita estranheza, até um final não previsÃvel
de excelente efeito — e nele é possÃvel reconhecer a técnica do
conto, gênero da estréia de Galera e para o qual ele ainda não retornou.
Usar
a voz feminina é um fetiche do escritor do sexo masculino. Entrar na
pele de uma mulher e conseguir enxergar o mundo através de seus olhos
é o equivalente, na literatura, a decifrar o mistério da concepção,
algo que o homem só conhece por acompanhar e, sobretudo, imaginar.
Galera se sai bem na experiência, tanto quanto um leitor homem possa
avaliar em termos de verossimilhança. Há uma nuança muito sutil na
relação entre as histórias de Anita, de sua personagem Magnólia
e dos bizarros escritores portenhos que pode muito bem refletir uma
construção tipicamente feminina: dispersiva em tudo o que for periférico,
mas obstinada quanto ao essencial. E o essencial é essa caixa preta
que o homem em poucas vezes encontra.
Apesar
disso, Galera constrói o romance com mão firme. Não há sobras nem
faltas, tudo está na medida certa. O léxico beira o coloquial mas
não dispensa o cuidado com a eufonia. Algumas expressões chulas entram
naturalmente no discurso, não soando forçadas nem sugerindo mau gosto,
caracterÃstica que afasta o autor de um modelo tão atual quanto equivocado
de transgressão. Também com naturalidade se dá a passagem do tom
neutro da terceira pessoa para o colorido e a obliqüidade do narrador
em primeira. Em suma, a obra forma um todo bem amarrado e coeso, embora
a história, à medida que se aproxima de seu desfecho, adquira uma
certa inconsistência, um ar de confusão que talvez seja reflexo de
uma percepção que se pretende feminina.
Outro aspecto a destacar é a
relação que o autor estabelece com Buenos Aires e como ela vai repercutir na
trama. Galera, assim como sua personagem Anita, não conhecia a cidade até o
momento em que viajou para lá em busca de uma história. E, também como Anita,
não se deixou seduzir pelo lado mais óbvio e turÃstico dessa que é uma das mais
belas metrópoles do mundo. Ao contrário, Galera foi buscar inspiração em endereços
pouco conhecidos dos turistas que, reais ou imaginários (aqui isso não faz a
menor diferença), pertencem a uma Buenos Aires mÃstica e atemporal que só se
revela a iniciados. A ConfiterÃa Ideal da Calle Suipacha, por exemplo, é para
a turista Anita tão igual a outras tantas que lhe passa despercebida; a surpresa
vem quando, levada por Holden, descobre que em seus altos há uma milonga:
Não tinha reparado na escadaria
de mármore próxima à entrada. Os degraus estavam polidos por décadas de pisoteio.
Faziam uma curva para a esquerda e davam num guichê com uma portinhola ao lado.
Ainda no meio da escada escutei uma música inaudÃvel para quem estava na cafeteria
do térreo, um tango antigo. A portinhola dava acesso a um grande salão onde
cerca de vinte casais, a maioria de meia-idade, executavam lentos passos de
dança. (...) Durante todo o tempo que passamos sozinhos lá embaixo, esse outro
mundo secreto seguia seu curso no pavimento superior.
Inevitável
ouvir ecos de Borges, embora não haja nenhuma referência mais explÃcita.
Isso pode ser atribuÃdo ao fato de que a Buenos Aires a um tempo cosmopolita
e misteriosa a que El Brujo está ligado de forma umbilical é exatamente
a mesma que Galera retrata agora com cores mais esmaecidas em sua visão
de estrangeiro. A própria história da confraria de escritores e seus
objetivos é feita sob medida para esse cenário, e só nele parece
plausÃvel. Por outro lado, Holden e seus amigos formam uma galeria
de tipos esquisitos que, se poderiam ser encontrados em toda parte,
dificilmente em outro lugar fariam o mesmo sentido. Galera enxergou
a passionalidade, o fascÃnio pelo trágico, o exagerado e uma certa
dose de ingenuidade, dentre outros tantos traços tÃpicos da alma portenha,
e usou isso tudo em seus personagens, extrapolando um pouco na intenção
de torná-los talvez mais argentinos.
Aos 29 anos e quatro livros
publicados, Galera, ao contrário de Anita, dá sinais inequÃvocos de que pretende
perseverar e crescer como escritor. Desde que lançou a coletânea Dentes guardados,
em 2001, cada novo livro tem significado para ele um desafio um pouco maior,
sempre vencido com persistência e de maneira elegante. Concorre para isso, dentre
outras virtudes, a humildade de saber ouvir, algo que anda tão escasso em nosso
meio e que Galera esbanja na construção de uma belÃssima carreira.
Trecho:
O
calor que oprimia a cidade desde minha chegada durou ainda uns cinco
dias, talvez uma semana. (...) A capital argentina parecia um animal
encolhido na sombra, transpirando pela lÃngua, sedenta do frio e da
umidade a que seu corpo tinha se adaptado durante décadas de evolução.
As pessoas na rua marchavam contrariadas por terem de andar com tão
pouca roupa, os cardápios dos restaurantes desculpavam-se por oferecerem
menus tão fartos e encorpados e todos aqueles homens bonitos que a
infestavam andavam depressa e bufavam, irritadiços, aguardando as condições
naturais favoráveis para manifestar na plenitude a soturnidade e o
charme que juravam possuir.
O autor:
Daniel
Galera nasceu em São Paulo, em 1979, mas viveu grande parte de sua
vida em Porto Alegre, onde freqüentou a oficina de criação literária
do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil na PUC/RS, iniciando a partir
daà sua carreira. De volta a São Paulo, publicou pela Companhia das
Letras o romance Mãos de cavalo (2006) e a reedição da novela
Até o dia em que o cão morreu, de 2003. Tem livros publicados
na Itália, na Argentina e em Portugal.
Publicado
em Rascunho, edição de dezembro/2008
Aprende-se mais a escrever quando se lê a crÃtica abalizada a respeito de uma obra de outro escritor e não à nossa. Não usamos mecanismos de defesa. Não li Cordilheira, mas gosto do tipo de desafio que é sair pelo mundo em busca de uma história. O trecho transcrito chega a ser sinestésico.
Scyla Bertoja, POA/RS 17/12/2009 - 14:44
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