Tudo que se faz pela primeira vez vem carregado de emoção. Também de ansiedade. Também de um friozinho na barriga, com certeza! Mas há um contentamento. Um não, vários: o das inovações, o das aprendizagens, o das coragens, etc. A primeira vez está embalada num imenso querer e na originalidade: cada um é dono das suas descobertas, do seu modo de fazer! Depois, fica a marca na memória.
Era a primeira vez que uma jovem formiga saia em expedição com todas as outras operárias do formigueiro. Ocupava a posição de número 101. Ao avistar um livro caído na grama, saiu da fila, movida pela curiosidade. Subiu na página, fuçou, xeretou e deparou-se com a palavra “folha”. E era tão atraente, tão verde, tão suculenta a palavra, que ela carregou-a nas costas e voltou para a fila. Como eram 794 formigas naquela fileira, ela ainda alcançou-as na posição 762. Mas, fora de lugar, a notícia da desordem espalhou-se, para chegar em alvoroço ao nariz da formiga-líder. Ordem para parar. Tempo para inspecionar. Olhos para descobrir a formiga fora de lugar e a palavra que ela carregava, que por causa da fome, agora era “olha”. A líder então, autorizou a exploração daquele achado, e todas as formigas correram para o livro. Voltaram para o formigueiro carregando palavras de todos os tipos: doces, pesadas, luminosas, leves. Levaram também pronomes e sinais de pontuação. A alegria tomou conta do lugar. E quando chegou o inverno, ao aparecer no formigueiro, oferecendo seus serviços de cantora, a cigarra tem uma grande e poética surpresa.
O livro é extremamente atraente, em todos os sentidos. A começar pelo formato “pocket” na horizontal! A quantidade de texto por página é outra questão importante para a fluidez da história.
Mas o que chama mais atenção é o jogo das palavras. O aspecto lúdico da linguagem, tão necessário ao livro infantil, é encarado como tarefa de peso nesta obra. A autora propõe que o significante (a própria palavra escrita, carregada pelas formigas) seja invadido fisicamente pelo significado. Explico: a palavra mel é lambuzada, a palavra mar tinha “o cheiro salgado e algumas gaivotas”, a palavra sol, iluminava e aquecia. Percebe a brincadeira? E com isso, com a possibilidade de conjugar as palavras, as formigas começam a se alimentar de poesia. Mais uma imagem bonita: devorar, comer, deglutir palavras, para devolvê-las acrescidas pelas imagens poéticas.
O livro tem ainda outros pontos fortes no trato com a língua: a invenção de palavras (“enformigadas”); a constatação de que a mudança de uma letra gera uma nova palavra e um novo significado; a brincadeira com os sinais de pontuação, com os pronomes, com as palavras que as formigas não levaram. Enfim, a expressão desses pequenos achados fazem o livro multiplicar seu tamanho.
A literatura infantil contemporânea também costuma dialogar com as obras canônicas ou modelares, para ressignificá-las - traço da pós-modernidade, como querem alguns? Ou da hipermodernidade, como dizem outros? Neste livro, em exercício intertextual, a autora dialoga com a fábula “A cigarra e a formiga”, de forma bastante saborosa e original.
Ao descobrirem a corporeidade das palavras, as formigas mudam de comportamento. E o leitor fica, certamente, em estado de graça!
A autora de Caxias do Sul (RS) tem longa experiência com projetos de leitura e estréia na Literatura com esse belíssimo livro. O ilustrador André Neves, usando como fundo papel reciclado, propõe também um livro delicado, com pequenas folhas secas, sombras, tons que vão do areia ao terra. A diagramação do texto também tem função importantíssima no livro: joga com os significados das palavras, cria ritmos e movimentos.
Ao final, o leitor atento, vai certamente olhar em volta de si, para perceber que as palavras, como formigas, fervilham por toda parte. E vai se encantar com a poética aproximação entre elas, na definição da autora: “formigas também são palavras; com seu alfabeto miúdo vão escrevendo na terra histórias de verão”.
CAVION, Elaine Pasquali. Formigas. Ilustrações de André Neves. São Paulo, Paulus, 2009. 48 pp.
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