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Literatura

Poesia e oralidade: carta para uma amiga atriz
Sidnei Schneider

Fiquei pensando na tua preocupação com a leitura em voz alta, a interpretação do poema, quando muitas vezes ele não apresenta as devidas marcações, ou vem organizado em estrofes que simplesmente cortam o que vinha sendo dito, versos que se quebram no meio para só continuar na linha seguinte, etc. A questão me pareceu interessante, e diz respeito a atores, atrizes e poetas.

Acho que há quem escreva já para a oralidade e sua poesia fica bastaste marcada por isso. Um Castro Alves, por exemplo, já escrevia pensando em declamar, verbo adequado ao período, para os grandes auditórios e as praças públicas, sem equipamentos de som e amplificador. Esse estilo, uma qualidade em função dos seus objetivos e necessidades, hoje tem sido injustamente visto como um defeito, por se abstrair as condições objetivas de então. Maiakóvski, com aquele estilo escadinha de arrumar os versos, fazia com que cada degrau fosse uma unidade fônica, para ser dita de uma só vez, e o fazia com o seu típico vozeirão em cima das máquinas das grandes fábricas, nos grandes teatros e nas assembleias russas para milhares de pessoas de uma só vez.

Já se a gente pensar num Mallarmè, distribuindo o verso espacialmente na página, ou nos ideogramas e na arte caligráfica do oriente, é outro papo, próprio do visual. Um Ferreira Gullar faz uso das possibilidades visuais em livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz e outros, mas aí a questão parece não ser só a de distribuir palavras na página de modo não linear ou a de criar um desenho de página menos quadrado, porque diz respeito ao ritmo. Um ritmo que não é sonoro, pelo menos nesse aspecto da espacialização, mas visual: a gente vai de um final de verso ao início de outro e realiza uma trajetória com o olho, muitas vezes um zigue-zague, o que se perde para quem apenas ouve o poema (embora sempre seja possível criar alguma correspondência oral).

Cortam-se versos também para gerar suspense, para duplificar ou exponenciar o sentido na passagem de um verso para outro, para criar uma contradição entre dois versos (Quarenta anos e nenhum problema/ resolvido, sequer colocado - Drummond), em suma, por infinitas razões de sentido, o que nem sempre é simples de transpor para a oralidade sem outras perdas ou uma perda maior. Por exemplo, fazer uma pausa num verso ou estrofe que termina com a palavra "de" pode não surtir efeito algum no receptor e ainda prejudicar a audição do poema (nem sempre, minha argumentação não quer fechar nada, deixemos tudo em aberto), embora tal expediente possa funcionar e ter lá suas razões na leitura silenciosa, lenta e repetida, sempre cheia de vaivéns e com um campo de visão maior. Há poetas que simplesmente estão distantes do verso como ele é costumeiramente entendido e o cortam em qualquer lugar (como se isso fosse de fato possível), o que, em função de um hábito arraigado de regras métricas e verso livre modernista, pode ser instigante, embora nem sempre seja criador de sentido poético.

É claro que os diferentes aspectos de um poema estão completamente entrelaçados, formam um todo indivisível que significa, apesar da eventual preponderância de um aspecto ou outro.

Em síntese, há poemas que levam em questão a oralidade e procuram demarcá-la o quanto possível e outros que não estão nem aí, embora (quase) todos sejam passíveis de verbalização. Muita coisa vai se perder de um veículo ou suporte para outro, e muita coisa vai ser acrescentada, como sabes melhor do que eu: entonação, maior ou menor velocidade da enunciação, pausas, expressão facial, gestual, movimentação, etc. Todo poema dito em voz alta, seja imaginado ou não para a oralidade, vai ganhar a marca única de quem o diz. Daí que estamos diante de um mundo poético não regrado, aparentemente cheio de problemas, mas na realidade com múltiplas possibilidades criativas, tanto para a escrita como para a interpretação.

De quem gosta muito de te ouvir.

POESIA E INTERPRETAÇÃO

A interpretação oral é uma outra arte a partir da arte do poema, que necessariamente o modifica. O poema visto na página e lido em silêncio é (quase sempre) espacial e oral ao mesmo tempo, porque a lembrança do som não desaparece. A interpretação oral têm suas próprias leis, precisando subverter aspectos poéticos não orais em benefício do próprio poema. Às vezes, o autor mesmo sabe disso e o faz quando se apresenta, outras vezes o faz sem perceber, inconscientemente. São duas coisas diferentes, o poema na página como mancha e o poema na voz de um ser humano particular.

Existem poemas sem página, como aqueles transmitidos pela tradição oral, e, eventualmente, experiências visuais mais totalizadoras, que excluem a possibilidade da leitura em voz alta.

A interpretação, mais complexa do que a simples emissão sonora, é outra arte a partir da arte do poema, do mesmo modo que o é um filme em relação a uma obra literária. Ou uma tradução em relação ao poema na língua de partida.

A interpretação é uma leitura - usando aqui o duplo significado de cada um dos termos.

28/03/2013

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Comentários:

Bonito e esclarecedor texto, Sidnei. Cobres o assunto - poucas vezes abordado - com clareza,conhecimento de causa e profundidade.Parabéns e um abraço, amigo!
José Antônio Silva, Porto Alegre/RS 29/03/2013 - 17:53
Belo texto, Sidnei! Gosto muito da musicalidade de certos textos, poéticos ou não. Ler em voz é sempre um prazer quando nos acaricia os ouvidos. Beijos!
Juliana Minho Vargas, Porto Alegre - RS 29/03/2013 - 10:39
Gostei muito do teu texto, Sidnei. Eu, que gosto de ler em voz alta, volta e meia me deparo com um poema totalmente avesso à oralidade, e nem por isso deixa de ser um grande poema. Valeu!
CLARICE MULLER, Porto Alegre 28/03/2013 - 19:38
Querido amigo Sidnei! Sabes que gosto muito de ler poemas, por isto, e pelos caminhos da poesia, o assunto que trazes é deveras interessante. Sempre que "ensaio" um poema para ler, vejo-me diante de um novo desafio, haja vista que o formato de cada poema difere um do outro. Mas nunca havia lido sobre o tema, que abordaste, como sempre, com aprofundamento e "elegância". Beijos, Neli
Neli Germano, Porto Alegre/RS 28/03/2013 - 16:49

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  Sidnei Schneider

SIDNEI SCHNEIDER é poeta, contista e tradutor. Publicou os livros de poesia Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer, 1999), a tradução Versos Singelos-José Martí (SBS, 1997) e o volume de contos Andorinhas e outros enganos (Dahmer, 2012). Participa de Poesia Sempre (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2001), Antologia do Sul (Assembleia Legislativa, Porto Alegre, 2001), Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, Florianópolis, 2011) e de mais de uma dezena de antologias. 1º lugar em poesia no Concurso Talentos, UFSM (1995), 1º lugar no Concurso de Contos Caio Fernando Abreu, UFRGS (2003) e outras premiações. Membro da Associação Gaúcha de Escritores.

sidneischneider@gmail.com


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