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Livros

Quando a liberdade descobre a existência
Cássio Pantaleoni

“Qual o valor dos livros?” — Por detrás dos óculos delicados, os olhos daquela professora do Colégio Santa Inês procuravam a melhor maneira de expôr o que ela esperava para o meu encontro. A audiência seria os alunos do ensino fundamental, durante a Feira do Livro daquele ano.

Pedia-me que conversasse por um par de horas com os alunos, abordasse a questão dos livros e da literatura de uma maneira geral, no intuito de inspirar a leitura. Pareceu-me uma ótima causa. Mas estranhei quando ela me disse que seria em uma manhã de sábado. Para mim, qualquer coisa do gênero para crianças não acostumadas a frequentar o colégio em finais de semana, sugeria desperdício. Ainda mais para ouvir filosofias de enaltecimento do livro e da leitura. Desafio grande. “Pode ser”, aceitei por educação.

Uma semana antes comecei a planejar o encontro com os recursos usuais que usaria para desenvolver qualquer outra reflexão. Teci um intricado sistema de argumentos que, ao ler em voz alta, pareceu-me mais o discurso de William Faulkner ao receber o Premio Nobel de Literatura em 1950: “Nego-me a aceitar o fim do homem”. Evidentemente, era inapropriado.

Ainda na segunda-feira resolvi “rever meus conceitos”. Essa decisão transformou os cinco dias que se sucederam em uma contagem regressiva para o fracasso. O que descobria, na medida em que explorava o tema em suas profundidades mais intocadas, é que me faltava a crença de que eu poderia convencer jovens mentes (a maioria entre nove e dez anos) do valor do livro através de um simples papo. Na época do império dos videogames e dos atrativos digitais da internet, que chances tinha um antipático objeto cheio de páginas e palavras, que não emitia som e nem piscava? Além: como concorrer, em uma manhã de sábado, com o conforto da cama, o descompromisso do pijama e os desenhos da Nickelodeon?

Na quarta-feira recebi um e-mail da professora. Informava que, além dos alunos, alguns professores participariam. Roí alguma unhas por conta disso. Agradar gregos e troianos? Pensando nos professores, não deveria infantilizar o discurso. Pensando nos alunos, deveria suprimir abstrações mais elaboradas. Como encontrar o equilíbrio?

Na véspera, apelei para o Power Point. Quem sabe algumas animações, letras piscando, cores correndo pela tela, imagens do Harry Potter e do Frodo? Depois de gastar toda a tarde de sexta-feira nesse objetivo, o resultado me pareceu, enfim, um lixo. Aquele expediente não combinava com as minhas crenças sobre o desenvolvimento cognitivo. Abrir mão da articulação de conceitos para promover o entendimento e o conhecimento equivale a pedir ao Dalai Lama que negue a reencarnação dos Tulkus.

Ainda na sexta-feira, deitei pensando muito sobre o que poderia usar para agradar aquelas mentes tão jovens e os seus professores curiosos. E, graças a Deus, peguei no sono sem concluir absolutamente nada.

O sábado amanheceu com chuva fina. A temperatura exigia mais que uma camisa. O vento não chegava a ser gelado, mas causava, vez que outra, algum arrepio. Cheguei ao colégio no horário, anunciando a minha responsabilidade daquela manhã para uma recepcionista que ficava em uma pequena cabine logo à porta de entrada do colégio. Ela sorriu de um modo tão doce que achei que tinha adivinhado o meu desconforto. A professora me cumprimentou entusiasmada, avisando outra novidade: todas as turmas dos níveis 3 e 4 iriam assistir a minha preleção. Confesso que, naquele momento, eu estava convencido de que tudo seria um grande desperdício de tempo de todos os envolvidos.

Enquanto caminhávamos até o auditório, lembrei dos anos investidos na Faculdade de Filosofia. Houve um tempo em que estive de caso com Descartes. À época, o Discurso do Método, apesar de sua simplicidade explanativa, era vigoroso. O Método cartesiano cativa — para compreender um problema, melhor é dividi-lo em partes menores e tratar de entender cada uma delas. Poderia fazer o mesmo? Observar primeiro, entender a audiência, postular o problema claramente, numa pergunta simples? Depois, cartesianamente, dividi-lo em problemas de menor dimensão, tentando construir algo que pudesse contribuir para que todos pudessem sair daquela sala com algum aprendizado debaixo do braço?

“Para que servem os livros?”, perguntei em voz alta – “Algum de vocês sabe?”, e já me arrependia ao ver o menino da primeira fila abrir uma imensa boca: o bocejo demorado. Mas se há algo que aprendi com a filosofia é que ela sempre nos põe em movimento, sempre nos leva para algum lugar. E foi aí que tudo aconteceu.

Ao ver o menino bocejar me ocorreu a ideia de liberdade. Em última instância, o desejo essencial de cada ser humano é ser livre para ser e pensar o que ele quiser. O menino sonolento não queria estar ali. Estou certo de que ele gostaria de exercer a sua liberdade e voltar correndo para debaixo dos cobertores, aproveitando a preguiça gostosa daquele dia chuvoso.

Pois escolhi aludir aos livros e à literatura como meios para alcançar a nossa liberdade mais importante: a liberdade de desenvolver ideias próprias, de não se deixar convencer por opiniões alheias sem antes exercer o olhar crítico. Para tanto, aludi ao livro de Descartes. De início, os alunos me devolveram apenas o olhar curioso, mas eu já não falava mais com eles. Eu conversava comigo. Eu desenvolvia as ideias com grande entusiasmo, pois na verdade aquilo era tudo o que importava dizer: ler é o que nos liberta! Vejam a historia desse homenzinho francês! O quanto leu? O quanto viajou? E o que é a liberdade senão a possibilidade de usar o pensamento em favor da clareza das ideias? “Ele escreveu esse livrinho, sabe, gente? Esse livrinho para explicar o que ele sentia“!

Acho que o meu entusiasmo contagiou a garotada. Eu perguntava, em linguagem simples, apenas para alicerçar a convicção de que, não importa a idade, nós confiamos mais no pensamento quando temos alguém que pensa com a gente. Inadvertidamente, reinaugurei a própria ideia do Cogito cartesiano. E tudo aconteceu desse modo:

“Vamos brincar de duvidar de tudo?”, para a menina da primeira fila. – “Tu achas que está mesmo sentada aqui na escola agora?”

“Acho”, retorcendo a boca rosada, depois de examinar com os olhinhos miúdos o resto da sala.

“E se isso for apenas um sonho?”.

Ela pensou um pouco: “Mas não é, né?”.

“Você tem certeza?”

Não vou reproduzir toda a conversa, até porque eu não interpelava só aquela menina, mas vários outros alunos sistematicamente. Às vezes um professor mais entusiasmado levantava a mão querendo dar a resposta, mas eu não permitia. Queria ver até onde as crianças podiam sustentar as suas convicções sobre sonho e realidade, suas existências, a existência do mundo etc. A sala começou a ficar ruidosa. Todos queriam participar de algum modo.

O sublime aconteceu quando todo o argumento cartesiano foi reconstruído: “Eu posso duvidar de tudo, certo? Mas eu posso duvidar que eu duvido? Posso? Não! Eu não duvido que estou duvidando agora. E se eu posso duvidar de tudo, inclusive que estou duvidando que eu duvido, de uma coisa eu posso ter certeza: se eu duvido, logo…”.

Um silêncio infantil esvaziou as conversas. Durante aqueles instantes, achei que os tivesse perdido. Talvez tivesse exagerado. O relógio na parede apressou os segundos e fez crescer minha aflição. Não teria resposta?

O menino que bocejara logo no início, agora tinha aquele brilho nos olhos que faz a gente apostar que por detrás há uma mente brilhante. Arregalava-se. Os lábios apertados como se quisesse excitar todas as suas sinapses para resolver aquele problema.

Não há momento mais mágico do que aquele em que uma criança toma consciência da importância do pensar. Quando isso acontece, parece que algo explode no universo, avisando Deus de que o ser humano vale a pena, de que ele pode enfim se transformar, tornar-se parte do grande espetáculo da história. É algo mágico.

O menino abriu a boca não mais para bocejar, mas para concluir, ainda numa questão, a mesma conclusão de Descartes: “Então, eu existo”?

Em casa, mais tarde, eu reconsiderei - qual o valor de um livro? E resolvi escrever.


09/04/2013

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Comentários:

Que banho em todos nós, humildes pensadores, existentes pessoas, hein, grande chefe?
Sergio Napp, POA 19/04/2013 - 14:21

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  Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni nasceu em agosto de 1963, em Pelotas, Rio Grande do Sul. Escritor, Mestre em Filosofia pela PUCRS e profissional da área de Tecnologia da Informação. Vencedor do II Premio Guavira de Literatura, na categoria conto, em 2013, com o livro “A sede das pedras”; finalista do Jabuti de 2015 com a novela infanto-juvenil “O segredo do meu irmão”. Segundo lugar na 21a. Edição do Concurso de Contos Paulo Leminski; duas vezes finalista no Concurso de Contos Machado de Assis, do SESC/DF; duas vezes finalista no Premio da Associação Gaúcha de Escritores (AGES). Desenvolve workshops sobre leitura, técnicas de escrita ficcional e filosofia aplicada à literatura. Obras Publicadas: “De vagar o sempre” – Contos – 2015, “O segredo do meu irmão” – Novela infantojuvenil – 2014, “A corda que acorda” – Infantil – 2014, “A sede das pedras” – Contos – 2012, “Histórias para quem gosta de contar histórias” – Contos – 2010, “Ninguém disse que era assim” – Novela – 2006, “Os despertos” – Novela – 2000.

cassio@8inverso.com.br
www.sextadepalavras.blogspot.com
https://www.facebook.com/cassio.pantaleoni.9


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