GULLAR, Ferreira. A menina Cláudia e o rinoceronte. Ilustrações do autor. Rio de Janeiro, José Olympio, 2013. 48p.
Criar é experimentar. Sempre. E quando tudo parece atingir um equilíbrio, que coloca em pé de igualdade a invenção e a técnica, a emoção entra na história para comprovar que é ela quem pode mais. Para que a criação seja obra de arte há muitos caminhos e muito trabalho. Mas pode haver também a mão do acaso.
A menina Cláudia brincava com restos de papéis coloridos, recortava, montava, testava até que deles surge um rinoceronte. Em meio aos restos, pedaços, picotes, o animal se insinua, se mostra por inteiro, muda de cor e finalmente revela que é “uma” rinoceronte, e que deseja ter um filhote. Pronto! Sem saber se será possível atender ao desejo da futura mamãe, a menina tenta. Na brincadeira de construir formas, e no jogo da experimentação, primeiro surge um hipopótamo, depois uma capivara, um jacaré, um elefante, um tatu, muitos bichos estranhos e uma girafa. É no limite da paciência, e no “lixo” dos pedaços sobrepostos, que finalmente surge o rinocerontezinho. Ainda incerto, a ponto de se perder, no meio da desordem. Mas quando ele enfim fica nítido, é azul, como sempre sonhara a mãe rinoceronte...
Estamos diante de um poema narrativo, dividido em pequenos versos. Como uma brincadeira de palavras que nascem das imagens formadas ao acaso, o texto também vai se recortando para explicar as imagens que se formam. A ênfase recai sempre na emoção da construção e na surpresa da descoberta. Perfeito como metáfora para o exercício da criação.
A fragilidade da criação ainda não fixada vai perpassando todo o texto e todas as ilustrações. Tudo pode virar outra coisa, a qualquer momento. É como se o leitor presenciasse a feitura da história, a partir das tentativas (e erros!) da própria personagem. É como se o leitor tivesse que acreditar piamente no que surge, para que a história se concretize e se torne aparente, fixa, feita, legível. É a materialização do jogo do criar. É a arte falando do fazer, demonstrando a próprio processo artístico. Metaliteratura, rica, porque estamos diante de dois códigos: o das palavras e o das imagens, com as ilustrações do livro destinado ao leitor criança (mas não só, claro!). Um livro infantil vai ter sempre essa dupla destinação: a criança leitora, o adulto que muitas vezes escolhe (e lê para o pequeno leitor) e um autor que é adulto, mas que precisa equalizar sua visão de mundo e sua linguagem.
Pois não é esse despudor para a brincadeira que aparece forte no livro?! Coisa de criança! Coisa de quem, mesmo adulto, conserva (e defende!) a sua criança!
E ainda há uma pincelada forte no livro, na questão da autoria. A obra nasce e depois se perde, porque outros a levam. Muito bom!
Mas também outra regra herdada do conto de fadas (transformado em sinônimo de obra infantil) é questionada: os finais felizes já não são obrigatórios! E se no momento derradeiro, a mãe leva o filhote e se perdem “na selva dos papéis coloridos” é só para lembrar que depois, o que interessa é que o equilíbrio a essa altura, não é o mesmo do início e que tudo é muito tênue e frágil e mutável.
O jogo da criação não seria tão bem conduzido, se o projeto gráfico do livro não estivesse atento a isso: a distribuição do texto nas páginas, os fundos coloridos, as massas de cores, gerando contrastes para o texto e para os papéis picotados. Mas há também uma limpeza visual, que conduz a leitura para a calma e a tranquilidade. A leitura do sabor e da contemplação. A leitura poética.
Somos levados a pensar que faz parte da proposta do livro duas brincadeiras que remetem à infância: a construção dos quebra-cabeças (os recortes, os picotes, as formas que se juntam, se encaixam) e o caleidoscópio (as imagens que se formam ao acaso, mas que mantém uma harmonia e uma beleza visual, fruto da simetria, criada pela ilusão do espelho, que serve de invólucro para o brinquedo).
A transformação é mesmo o ponto alto do livro: a mãe rinoceronte que nasce vermelha, muda para verde num lance de sorte, volta ao vermelho quando se zanga e depois fica azul, vira branco e termina multicor. E o filhote que se fez nítido em azul, termina em preto, com pedaços em azul e vermelho. Há nessa construção algo que nos remete para os vitrais: a cor que aparece quando atravessada pela luz! É a natureza que regula o olhar. A natureza (e a posição) do criador (no caso a menina Cláudia; no caso o leitor).
Ferreira Gullar, que assina o texto e as ilustrações é um importante poeta brasileiro, largamente premiado e festejado. Suas obras são sempre motivo de alegria para qualquer leitor!
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