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Geração Coca Zero
Marcelo Spalding

Você já assistiu ou ouviu o comercial das línguas e do zoião? Aquele da Coca-Cola, quer dizer, da Coca Zero? Pois é, não sou especialista em marketing, mas confesso que não consigo entender como uma empresa faz propaganda de um produto novo opondo ele a um produto antigo, tradicional, carro-chefe de uma história centenária. Ações de marketing que ano passado traziam a marca Coca-Cola, como o Estúdio Coca-Cola, agora carregam a marca Coca Zero, tornando-se Estúdio Coca Zero, sem contar os preciosos segundos de rádio e televisão utilizados pela companhia para divulgar o lançamento de rótulo preto em oposição à tradicional Coca "normal".

Não vou entrar no mérito se a Coca Zero é ou não igual à sua avó, particularmente acho a Zero uma Coca sem gás, mas melhor que a insossa Light. A questão é por que a empresa insiste tanto na publicidade desse novo produto, chegando a esconder a divulgação da Coca "normal" atrás da baboseira Maradona X Biro-Biro e dando todo o destaque para a Zero. Não é um favor à sociedade, um auxílio à saúde pública em prol da diminuição do peso da população, certamente não. A questão principal é que, como diria Camões, "mudam-se os tempos, mudam-se as vontades", e a geração Coca-Cola já tem seus filhos, às vezes netos, e para a Coca são esses novos consumidores que interessam, gente que se divide entre o computador, as academias e suas gradeadas residências, gente que pede maçã e salada no McDonald's e no supermercado acomoda no carrinho cevas e energéticos (aliás, também não entendo como uma empresa só vendendo aquela porcaria do Red Bull consegue ganhar tanto, mas tanto dinheiro que chega a ter uma equipe de F1 com seu nome...). 

Mas voltemos à música, pois foi um outdoor anunciando outra edição do Estúdio Coca (agora) Zero aqui em Porto Alegre que me provocou essa reflexão. Aliás, desde que o Jota Quest apareceu fazendo propaganda da Fanta que não me sai da cabeça aquele verso dos Engenheiros do Hawaii: "a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerante". Bem, agora não é uma, são muitas as bandas vendendo a Coca Zero, e não será estranho que num desses shows uma dessas bandas invoque o grande Renato Russo e cante "Geração Coca-Cola". Coca-Cola normal! E Eis a questão: será que estamos assistindo ao surgimento de uma espécie de Geração Coca Zero, mais preocupada com sua imagem, seu corpo, suas calorias? 

Os versos de Renato são dos anos 80, e a juventude que faria a revolução, a ironicamente chamada Geração Coca-Cola, hoje é adulta, assiste Big Brother, imita o Juvenal Antena e talvez até assine a Veja (Deus me livre!). Mas no seu lugar deixou a geração Coca Light, dos anos noventa, e agora essa geração que aprimora e exagera os valores da outra, a Geração Coca Zero. 

Se a Geração Coca-Cola foi programada para receber os enlatados do USA, a geração Coca Zero convive com os enlatados culturais norte-americanos, exibidos à exaustão nos canais por assinatura, mas com muita freqüência lê na etiqueta dos seus tênis, roupas e aparelhos eletrônicos a já famosa frase "Made in China" (um amigo meu comprou um notebook da Apple e, surpresa!, lá estava: Made in China). Se a geração Coca-Cola comia lixo comercial e industrial, a Geração Coca Zero é entupida do lixo serviçal, pois como nunca o setor de serviços esteve presente na sociedade através das teles, das financeiras, das TVs por assinatura, dos provedores de acesso à internet, dos cartões de crédito, todos eles nos entupindo de lixo em forma de spam, de anúncio, de promessas. E se a Geração Coca-Cola era feita de burgueses sem religião, a Geração Coca Zero é repleta de burgueses conectados a alguma crença, desde grupos de jovens cristãos até centros zens de ioga, passando pelas megalomaníacas igrejas pentecostais. 

E então vem o refrão, e no refrão está a maior diferença entre uma geração e outra, uma época e outra: 

"Somos os filhos da revolução

Somos burgueses sem religião

Somos o futuro da nação

Geração Coca-Cola" 

A Geração Coca Zero não é filha nem neta da revolução, seja a revolução ditatorial de direita, hoje empurrada para baixo dos tapetes e restrita aos livros de História, seja a revolução cultural de Maio de 68, hoje relembrada apenas pela efeméride, mas ausente mesmo dos livros de História. No dicionário da Geração Coca Zero não tem a palavra burguês e, se tiver, seu sentido é simpático, como na música de Seu Jorge. E, fundamentalmente, a Geração Coca Zero não quer ser o futuro da nação, rejeita esse peso e prefere preocupar-se com seu próprio futuro: tendo uma chance, fará o futuro de outra nação, preferencialmente européia ou da América do Norte. 
A escola, que talvez antes mencionasse todas as manhas de um jogo sujo para ensinar que não é assim que tem que ser, hoje se esmera em preparar cada um de seus alunos para jogar da melhor forma possível com as manhas desse jogo, que nem é mais chamado de sujo, apenas de "competitivo". Ensina a marcar cruzinhas para o vestibular, a falar inglês e espanhol com fluência, a ser mais e mais criativo. 

Não cabe, nessa coluna, juízo de valor sobre o que é melhor, Coca Normal ou Coca Zero, a Geração Coca-Cola ou a Geração Coca Zero, o maio de 1968 ou esse maio que recentemente se encerrou. O segundo não existiria sem o primeiro, um é produto do outro, e pelo bem ou pelo mal, de uma forma ou de outra, a sociedade segue avançando, aparentemente com menos sonhos mas também com mais opções de escolha. Particularmente, uma coisa eu lamento com ênfase: que não haja nessa Geração um Renato Russo para sintetizá-la.


12/06/2008

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Comentários:

Quando criança, a geração coca cola engordava pouco mesmo tomando a "velha coca cola". Porque queimávamos as calorias correndo, bicando de esconde, esconde, e pulando cordas etc, não ficávamos parados a frente de computadores ou com celulares jogando. A coca cola mudou, porque temos muitas pessoas acima do peso, mas o que precisava mudar são os hábitos das pessoas, porque vejo elas tomando coca zero e comendo um belo hambúrguer, ou almoçando em uma churrascaria. Precisamos adequar os produtos, ou conscientizar as pessoas? As empresas precisam ser mais pedagógicas para serem politicamente corretas. Pois agindo assim, só estão mudando o sofá do lugar.
Maria Cicera Araújo Fonseca, São Paulo 15/05/2021 - 12:13
Excelente crônica! Não sei exatamente o motivo (ou sei? haha!), mas ela me lembrou um evento da adolescência: enquanto minha mãe, minha irmã e eu andávamos pelas ruas do centro velho de São Paulo, explodiu um piquete, em prol das Diretas Já, a uns metros de distância de nós. Corremos para dentro de uma loja de sapatos, tremendo de medo, porque havia gente tentando derrubar a porta de rolo da loja fechada segundos depois de entrarmos. Escutamos barulho de bombas e gritaria, um dos chutes na porta estourou o vidro de uma das vitrines. Naquela época, tomávamos Coca Cola, que vinha em garrafinhas de vidro. Ainda hoje, peno para encontrá-las online. Minha geração, confesso, morria de medo de muita coisa, mas adorava engordar com Coca Cola, pipoca e novela. haha Um abraço
Celma Terra Nazareth, Sorocaba 13/04/2021 - 11:49
Ótimas considerações sobre a evolução da humanidade.
Lúcia Maria Endler, Capão da Canoa 18/08/2020 - 15:13
Amei essa crônica, Marcelo! E os ídolos? "Morreram de overdose..."
Deise A. R. dos Santos, Lajeado/RS 13/03/2018 - 16:18

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  Marcelo Spalding

Marcelo Spalding é professor, escritor com 8 livros individuais, editor de mais de 80 livros e jornalista. É pós-doutor em Escrita Criativa pela PUCRS, doutor em Literatura Comparada pela UFRGS, mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS e formado em Jornalismo e Letras.

marcelo@marcelospalding.com
www.marcelospalding.com
www.facebook.com/marcelo.spalding


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