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Eu e a Barata
Léo Ustárroz

Eu não mato baratas. Digo que as tenho nojo. Isso é parte da verdade, pois, de resto, também tenho pena da matá-las. De uma forma menos intensa, isso ocorre em relação a formigas, moscas, aranhas, quase tudo, menos mosquitos. Esses eu amasso sempre que posso.

Resgatei esse assunto das baratas recentemente, com a ampla divulgação e comemoração do centenário da publicação de “A Metamorfose”, de Kafta, publicado em 1915.

Minha primeira leitura dessa obra foi no segundo grau do Colégio Rosário — se chamava curso científico —, a mais de quarenta anos, por indicação do querido Irmão Marista João Batista Camilotto, professor de literatura, e que me marcou mais do que qualquer leitura que eu tenha já feito, pois foi quem me abriu as portas para os bons livros.

Além da leitura e sinopse de ”A Metamorfose”, deveríamos simular uma entrevista com dez perguntas simples e diretas ao metamorfoseado Gregor Samsa, e respondê-las também, para apresentação em aula. Não recordo de todas minhas perguntas àquela espécie monstruosa de inseto, mas de três delas, sim. Eu perguntava: — “Tens medo dos humanos?”, e ela — “Medo, não! Nojo!”. — “Tens medo de algo?”, — “Sim, de sapatos de bico fino, chinelos e vassouras!”. E, por último, perguntava: — “Se não fosses assim, como gostarias de ser?”.

Para essa última pergunta, nunca tive uma resposta, pois simplesmente não conseguia imaginar o que gostaria de ser uma barata, se pudesse não ser barata. Seria como perguntar a uma pessoa o que gostaria de ser, caso não fosse humano. No máximo, ouviríamos uma resposta sem valor qualquer.

Mesmo com a resposta em branco, optei por apresentar em aula essa questão, permitindo que alguns colegas trouxessem respostas variadas dizendo quererem voltar a ser Gregor, ou terem uma carapuça metálica indestrutível pelos humanos, e alguns até viram vantagens em permanecer barata, como um deles que afirmou valer mais ser uma barata que pensa como humano, do que um humano que pensa como uma barata. Não deixa de ser uma frase de efeito, mas não creio que ele pensasse realmente assim.

Essa experiência teve um efeito metamorfoseante na minha percepção dos animais, pois desde então passei a vê-los quase todos, mas particularmente os insetos, como se tivessem alguma humanidade. Inclusive aceitando que — como seres vivos — fossem dignos de uma alma, o que permitiria renascerem na forma de outras espécies, com a mesma alma, ou com outra, isso não era importante. Nessa época jovem, pensava muito em quantidade de almas, reencarnação, e coisas assim. E, dando alma aos animais, solucionava algumas questões que me pareciam bastante intrincadas.

Por casualidade ou não, naqueles dias, teve um acontecimento — se poderia chamar de encontro? — numa noite quente de sábado, com um iminente temporal já a postos, em que eu voltava da rua depois de uma saída com amigos. Ao acender a luz da cozinha, por onde eu entrava em casa, estava postada, bem no meio do piso de ladrilhos desenhados, uma enorme barata, com forma e contornos bem definidos, mais para marrom muito escuro do que para castanho caramelo, lustrosa, perfeita. Ficamos imóveis, a barata e eu. Pensei se não estaria morta, mas não, parecia cheia de vida.  Estando com o corpo alinhado na direção da porta, ela, a barata, poderia sair correndo e fugir, pois eu não a alcançaria. Mas, sem saber disso, parecia me olhar, embora eu não localizasse seus olhos, e ficamos alguns instantes assim. Pela primeira vez pude ver atentamente como era o corpo de uma barata, suas duas pernas dianteiras menores, depois mais duas intermediárias em tamanho e posição, e finalmente, as duas grandes pernas da metade do corpo para trás. Todas peludas, ou talvez espinhentas, isso eu enxergava bem. Inerte, não mexia nem as antenas, talvez concentrada em sentir meu cheiro e atenta a outras percepções que não imagino quais fossem. E nesse momento, me lembrei da entrevista da aula de literatura e perguntei mentalmente, mas depois repeti em voz alta, — o que queres que eu faça? —. Sem uma resposta expressa — se houvesse não sei o que teria me acontecido —, eu entendi, naquele silêncio, que tudo o que aquela barata queria é que eu a poupasse. Então, abri totalmente a porta, me coloquei junto à parede lateral da cozinha, e esperei que ela entendesse. Passado pouco tempo, movimentou-se, primeiro devagar, depois correu até a escuridão da rua, detendo-se brevemente na soleira da porta. Tive a impressão de que se virara na minha direção e me observara mais uma vez, antes de desaparecer na noite, mas disso não tenho certeza, pois minha excitação com aquela experiência inusitada afetava meus sentidos. Eu não sei quem seria aquela barata, mas estava seguro que não era uma simples barata.

Tudo isso recuperei de algum canto de minha memória rígida, depois de reler “A Metamorfose” de Kafta, agora com olhos que não descartam que nós e as baratas, podemos ter em comum as almas que nos habitam, sem nojo algum, sendo gente ou insetos.


15/02/2016

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Comentários:

Ótimo, Léo... E já começas bem, politicamente falando: ..."menos mosquitos. Esses eu amasso sempre que posso." Imagino que antes da Zika, Dengue e Chikungunya esta última frase não estaria no texto. Sabe que me identifiquei, se é este o termo, várias vezes durante a leitura. Muitas vezes já me senti como um grande salva-vidas, resgatando algum inseto lutando desesperado para sair do vaso sanitário e já salvei moscas "atrapadas" como dizem aqui na fronteira, em teias de aranhas. Mas como tu, as aranhas eu amasso sempre. Gostei muito, Léo! Continua! Um abração!
abaetê, Uruguaiana/RS 16/02/2016 - 11:48
Foi gostoso ler o texto. Conquistou-me o jeito de escrever, mas não a simpatia pelas baratas. Ainda me sinto num nível primário nesta questão. Nem o budismo me segura.
maria rosa fontebasso, Porto Alegre 16/02/2016 - 09:09
Argh...baratas.Acho até que o termo hispânico é mais apropriado para elas: cucarachas. Já quanto a ser outra coisa, não fosse eu humano, gostaria de ser um passarinho, mas sem ter o Antonio Rissato, quando menino, por perto com seu estilingue.
Antonio Rissato, POA-RS 15/02/2016 - 22:51

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  Léo Ustárroz

Léo Ustárroz nasceu em 1952, natural de Bagé-RS. Com formação em Engenharia Química pela UFRGS e Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS, é empresário, bloguista, e contribui como articulista em jornais locais e sítios eletrônicos. Autor dos romances SALA DE EMBARQUE (2016) e RESGATE EM PAMPLONA (2018), pela Editora Metamorfose.

leoustarroz@jus.adv.br
leoustarroz.blogspot.com


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