Ensinar língua nativa, por exemplo português para brasileiros ou inglês para ingleses, é sempre muito difícil, pois a rigor todos os nativos de uma língua a conhecem desde os dois, três anos de idade (embora todos vivam com a sensação de "falar errado", motivo pelo qual muitos não escrevem um texto por conta própria há anos).
É preciso, porém, entendermos que uma coisa é a capacidade linguística e outra, a capacidade de expressão. A capacidade de expressão é aquela que nos permite narrar fatos, defender ideias, descrever situações, falar com nossos amigos, falar em público, falar ao telefone, etc. Em suma, participar da vida social, comunicar-se.
A capacidade linguística, por sua vez, é o conhecimento da estrutura de um idioma em especial, sua ortografia (que é apenas um dos itens do idioma), sua estrutura, seu léxico. Aqui ainda temos a capacidade de interpretação, que exige capacidade linguística, mas também um certo conhecimento de mundo.
Em geral, treina-se nas disciplinas de Língua Portuguesa a capacidade linguística, fazendo os alunos ler, escrever, interpretar, ensinando ou relembrando convenções ortográficas, estruturas sintáticas e morfológicas, etc. Esse conhecimento é infinito, quanto mais se estuda uma língua e mais nos aprofundamos nela, mais dúvidas temos e, por vezes, mais inseguros nos sentimos (quem acha que sabe tudo de seu idioma, procure saber o que é fonologia, etmologia ou pragmática, por exemplo).
O problema é que o público leigo, que realmente acredita que não sabe sua língua nativa, usa isso como desculpa para não exercitar sua capacidade de expressão, o fazendo apenas quando é obrigado a tal, como numa entrevista de emprego. Com isso, não escrevem e até evitam falar em público para não errarem, deixando de praticiar aquilo que é o mais importante para qualquer ser-humano: a comunicação.
Para que se deve ter capacidade linguística, afinal de contas, se não for para nos expressarmos, nos comunicarmos?
Claro que algumas pessoas têm uma invejável capacidade de expressão sem necessariamente ter um grande conhecimento linguístico. Nosso ex-presidente Lula é um bom exemplo. Alguns músicos e escritores também demonstram genialidade em suas áreas, ainda que nunca tenham estudado a fundo questões de gramática. Mas parece inegável que quanto mais capacidade linguística tivermos, mais ferramentas para usarmos com nossa capacidade de expressão teremos.
Particularmente, acredito que o ideal seja trabalhar com esta capacidade de expressão como objetivo, mas lidar, sim, com os aspectos técnicos da língua. Percebi que muitos dos meus alunos de graduação, muitos mesmo, não sabem diferenciar um verbo de sua forma nominal, um adjetivo de um advérbio, não lembram o que é preposição, conjunção, interjeição, isso sem falar no absoluto esquecimento sobre o básico de sintaxe (sujeito, verbo, objeto, adjunto adverbial). Pergunto: como ensinar pontuação ou crase, por exemplo, para estes alunos, sem primeiro retomar esses aspectos técnicos, gramaticais?
Tal desconhecimento irá prejudicá-los até quando, fora dos bancos universitários, procurarem um livro sobre linguagem ou produção de texto, bem como uma gramática, e se depararem com dicas como: "transforme verbos em substantivos abstratos para dar coesão ao texto". No caso das gramáticas, lerão o seguinte: "objeto indireto é precedido de preposição". Aí o aluno coça a cabeça e se pergunta: "o que é mesmo preposição?".
Além disso, percebo que a própria interpretação de textos fica prejudicada quando, por exemplo, o leitor não sabe a diferença de um verbo no modo indicativo, subjuntivo ou imperativo, quando não consegue identificar o referente de determinado pronome ou o sujeito de determinado verbo (isso sem falar na compreensão de longos períodos subordinados ou construções na voz passiva).
Pode parecer um exagero dar tamanha importância à capacidade linguística, mas numa sociedade em que até a marca do tênis é fonte de preconceito e segregação, cometer erros como "menas" e "previlégio" pode comprometer uma ascensão profissional, assim como erros menos grosseiros, como "para mim comer" ou "peguei ela" podem servir de chacota entre colegas de profissão. O alvo da chacota, talvez com o histórico de dificuldades na disciplina nos tempos escolares, vai criando uma ideia errônea de que não sabe "escrever", não sabe "se expressar direito", restringindo suas intervenções sociais linguísticas àquelas poucas vezes em que é obrigado a redigir um email ou um texto profissional.
Raramente esse jovem (ou nem tão jovem assim) enviará uma carta questionando determinada empresa, um texto para um jornal com sua opinião sobre determinado assunto, uma correspondência para o político que ajudou a eleger cobrando determinada atitude. Pior que isso: será facilmente fisgado por textos pomposos publicados em jornais e revistas de grande circulação e escritos por pessoas com domínio linguístico, mas posições discutíveis, ficando nosso jovem (ou não tão jovem assim) a mercê dos posicionamentos ideológicos da chamada grande mídia, incapaz que ele é de desenvolver conceitos e reflexões próprios.
Dependendo da profissão, mais do que uma questão de afirmação social a capacidade de expressão associada à capacidade linguística é vital. Vejamos o caso do advogado, por exemplo. Como bem salientam Cláudio Moreno e Túlio Martins, em Português para Convencer, "a relação do advogado com a linguagem, no entanto, é muito mais complexa do que a dos outros profissionais. (.) Para o advogado, tudo é linguagem: é esse o único instrumento de que ele dispõe para tentar convencer, refutar, atacar ou defender-se. Também é na linguagem que se concretizam as leis, as petições, as sentenças ou as mais ínfimas cláusulas de um contrato".
Tal máxima vale para jornalistas, publicitários, professores (de todas as áreas), acadêmicos em geral e, por que não, para médicos e administradores que diariamente lidam com pessoas, sendo a comunicação sua principal ferramenta.
Enfim, ter capacidade de expressão, , é fundamental para sermos bons profissionais, bons cidadãos, participarmos ativamente da sociedade. Ter capacidade de expressão é decisivo para convencer, explicar, contar. Ter capacidade de expressão linguística é, em última análise, o que nos diferencia dos outros tantos animais.
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