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Reflexão

Tarde de verão
Simone Saueressig

Há algo denso no silêncio das tardes quentes das cidades pequenas. É quase um aroma. Quase tangível. Quase. É verdade que o sol do interior tem outro dourado, é outra a cor do sol nos lugarejos junto às estradas que serpenteiam pelas serras. A luz é mais brilhante e mais vetusta, uma carícia que arranha os lábios e arde nos olhos.

No silêncio denso, a pele se arrepia; vertigem sensual que não se explica.

No dourado velho da meia tarde, o corpo busca o refúgio da sombra, dessa vez abrigada sob a guarda do telhado da igreja onde o sino acabou de dar as horas. Sombra que é escassa, mesmo lá, onde o sol desenha o caleidoscópio dos vitrais coloridos no chão, e revela sem pudor o teto e as paredes pintados. Sem luz, não há nuance.

Toco o banco de madeira quente e o silêncio se sobressalta em estralos. E depois, de novo, quietude.

É nesse quieto que ouço algo. Um pulsar constante e mecânico, mais um chiado do que uma batida, e parece longe, como tudo aqui parece distante. Mas quanto mais ouço, mais alto ele fica, não como se avançasse no espaço, mas como se mergulhasse na mente, cada vez mais fundo, e a tomasse para si, redundante, letárgico.

“É a máquina do relógio”, diz minha mãe, e o som arrastado ganha outra dimensão:

Um relógio de igreja! Um de verdade! Não um aparelho eletrônico, microprocessado, ligado em rede com Greenwich, Tóquio e o tempo virtual da nossa ansiedade cotidiana, mas uma coisa mecânica, que não faz nada, absolutamente nada, a não ser mover-se continuamente, sem ir a lugar algum, guardada perto o bastante para ressoar rouco pela igreja e longe o bastante para ficar fora dos olhos. Relógios eletrônicos são precisos mas não são reais. Real é a engrenagem que atrasa se não lhe derem corda.

Acima do coro.

Subo as escadas com o coração pulsando em dobro, o prazer infantil da descoberta. Pisar o chão de madeira do balcão é despertar mais um harpejo lígneo de ponta a ponta das tábuas enceradas. Mais dois, três degraus, um deles tosco, de madeira sem outro polimento que não os dos pés dos que sobem e descem para puxar as cordas do sino – que, sim, ali estão elas, penduradas como tentações natalinas – e então, lá está! Um dinossauro de metal: rodas dentadas, armações de aço, cabos que o prendem ao teto, como se temessem que saísse andando por aí, molas, molinhas, mais rodas dentadas, todas muito compenetradas e azeitadas, mais estacas que giram, um pião com asas de catavento que me avô chamava de “borboleta”. Sem ir nem vir, o relógio se move compassado, e acima de todo aquele conjunto pesado e inerte, que, assim mesmo, inerte e pesado, não deixa de andar, um disco de ferro do tamanho de um prato pequeno, com ponteiros de ferro que se movem e espelham o que o mostrador da torre mostra: três e quinze. Discretamente instalado, quase oculto atrás de um cilindro, um pequeno disco conta o que não pode ser medido: deslizando sem travas, o segundeiro.

Um autêntico Bruno Schwertner Estrella!

Que eu não sei quem foi.

Suspiro. Levanto a máquina fotográfica e encho o velho relógio de beijos digitais. A cada disparo um outro segundo, a borboleta gira, o balanço libera um dente, uma roda avança, outras tantas se movem, outras, apenas, esperam a sua vez. E nunca capturo o mesmo gesto, e nunca imobilizo a mesma volta.

Ô paciência tem o Tempo. Tão diáfano, intangível, tecido segundo a segundo por um amontoado de rodas que nada mais fazem do que girar em torno de si mesmas, umas tocando as outras, umas empurrando as outras, tudo isso num encaixe complexo, cheio de causas e efeitos que faz absolutamente nada. Não trabalha, não cria, não alimenta. Apenas se move. E é assim que tece o Nada que preenche as tardes quentes do verão do interior de um brilho dourado único, que nunca mais se reproduz a não ser naquele único e diáfano instante.

As tardes do interior são densas da certeza preguiçosa que tudo o que é real serve apenas para tecer a irrealidade das coisas findas: o ser, o estar, o lembrar. O Tempo, como a Memória, é invenção dos homens. Apenas o olvidado é eterno.


29/05/2018

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Comentários:

Gostei imensamente do texto. Da forma como ela faz a volta ao mesmo assunto...o relógio...sem parecer repetitiva! Mas sobretudo gostei demais do olhar literário sobre uma pequena cidade tendo em vista que acho difícil encontrar temas interessantes em lugares pequenos.
Rosângela Maria de Jesus Pereira, Novo Cruzeiro 20/08/2018 - 23:55
Que texto lindo! Extremamente visual - li como quem assiste um filme. Parabéns!
Carol Nunes, Rio de Janeiro/RJ 27/06/2018 - 08:29
Texto lindamente escrito, Simone. Gostei muito! Parabéns.
Letícia Möller, Porto Alegre/RS 29/05/2018 - 11:55

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  Simone Saueressig

Simone Saueressig nasceu em Campo Bom (RS), em 1964. Professora de balé desde os dezoito anos, a autora também trabalhou como editora do suplemento infantil "Popinha" do Jornal NH, de Novo Hamburgo. Na década de 90, Simone morou na Espanha e neste período escreveu inúmeros contos infantis para o jornal "Ya", de Madri. Atualmente, Simone tem vários títulos publicados para o público infantil e infanto-juvenil. Entre eles, destacam-se “A Máquina Fantabulástica” publicado há 20 anos, ininterruptamente pela Editora Scipione, e os livros “O Rubi Ragank” e “A História do Rubi Ragank”, publicados em 2012 pela Um Cultural.

contato694@gmail.com


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