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Reflexão

Vira-latas
Simone Saueressig

Dia desses, ganhamos novos vizinhos. Para minha alegria, vizinhos com vira-latas. Quem me conhece sabe que gosto demais de um focinho comprido.

Eles são dois guaipecas, como manda o figurino: um grande, de voz possante e cara de bobo. Quero dizer, de mau. De bobo-malvado, do tipo que se pegar sua canela, estraga. Eu disse, “se pegar”, o que é uma condicional, se não me engano. Condição sine qua non. Sem ela, o terrível vaticínio de ter a perna mastigada por um par de mandíbulas respeitáveis, não se concretiza.

O outro “sujeito” é pequeno. Barulhento como todo o cachorro pequeno. A gente olha e pensa “óóóinn, que fofo” e no instante seguinte descobre que ficou sem canela, dedo, e nada que o valha. Cachorro pequeno é sempre mais perigoso do que o grande, porque engana a torcida.

Enfim, agora, em substituição do único vira-latas de plantão que havia deste lado da rua – na outra esquina temos um daschund que, como se sabe, são perigosos ao extremo, parentes de dobermans e tudo o mais –, temos dois. Dois guardiães incansáveis da lei e da ordem na rua, que se posicionam na janela do chalé e não perdem nada, nada, nada, do que se passa na rua, além da grade do jardim.

Passa gato, latem (é lógico que latem). Passa cão de rua, latem (imagina que não).

Passa cão com dono, no final da tarde, naquele momento relax só os dois, trocas de confidências, carinhos e aconchego, latem (invejosos da liberdade alheia).

Pousa pombo, latem (confusos, acham que estão latindo para galinhas. Ou não).

Passa casal de namorados, latem.

Passa uma sombra desavisada, em busca de um corpo para representar, latem (assombração, aqui, não!)

Passa um pé de vento…

Ah, você já entendeu. Eles estão o tempo todo na janela, como fofoqueiras de plantão, dando o serviço do que acontece na rua, melhor do que qualquer facebook que a gente possa imaginar.

Só que no outro dia…

No outro dia, estou aqui no PC, escrevendo ou procrastinando, não lembro bem, e ouço aquele ruído espoucado. Achei que era alguém soltando foguetes (vai que ganhou na megasena, não é?), mas olhei para fora e vi as pombas, que não se espantam nem com o trânsito da rua, alçando voo esbaforidas. Em seguida, um cheiro inconfundível de pólvora.

“Tiros?” penso, e como toda boa brasileira, meti o nariz pela janela, para saber o que acontecia. Na construção da esquina, já havia um pedreiro espiando e vozes alteradas ecoavam pela rua.

Rua silenciosa como um túmulo.

De fato, era um assalto bem contemporâneo: perto do meio dia, sol a pino, gente passando, tudo tão diferente dos filmes, quando assaltos acontecem à noite, em algum lugar ermo, com a trilha sonora ecoando sinistra na escuridão da cena, pontuada pelos latidos distantes e furiosos de um cão em off.

Aqui, na insegurança dos nossos dias atuais, foram os gritos de um policial que ecoaram secos e autoritários na rua quieta.

“Sai! Sai!”

Nenhum latido.

“Deita! Agora! No chão!”

Sequer um rosnado a título de resmungo.

“Mão nas costas!”

Na janela dos vira-latas, nem sombra de cão.

Surgiu uma viatura. Mais gente falando. Motocicletas com o giroflex tingindo de vermelho a sombra do chalé. Tudo na mais profunda e santa paz canina que você conseguir imaginar. Os vira-latas só apareceram depois que tudo tinha sido solucionado: assaltante preso, vítima acudida, policial aplaudido à discrição, viaturas partindo. Chegaram quietos, farejando como dois perdigueiros na trilha da caça.

Então, depois que todos tinham ido embora, o bando de pombas pousou no meio da rua, como de hábito, alegremente, em busca de alguma migalha.

Ah, mas pra quê!

Latidos. Muitos latidos. Afinal de contas, as pombas carregam doenças. Uma autêntica ameaça à vida. Dos outros. À vida dos outros.

Vira-latas esperto é assim de latidor. Sempre avisa quando tem alguma ameaça no pedaço.

Pra que avisar sobre o óbvio ululante, não é? Se rola tiro, grito, ameaça, a gente não precisa avisar. Todo mundo sabe como é.

Cachorro que late em assalto é só em filme, viu? Os de verdade preferem colocar o focinho no seguro, em algum lugar onde o assunto sério é responsabilidade dos outros.

Sempre dos outros.

01/10/2018

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  Simone Saueressig

Simone Saueressig nasceu em Campo Bom (RS), em 1964. Professora de balé desde os dezoito anos, a autora também trabalhou como editora do suplemento infantil "Popinha" do Jornal NH, de Novo Hamburgo. Na década de 90, Simone morou na Espanha e neste período escreveu inúmeros contos infantis para o jornal "Ya", de Madri. Atualmente, Simone tem vários títulos publicados para o público infantil e infanto-juvenil. Entre eles, destacam-se “A Máquina Fantabulástica” publicado há 20 anos, ininterruptamente pela Editora Scipione, e os livros “O Rubi Ragank” e “A História do Rubi Ragank”, publicados em 2012 pela Um Cultural.

contato694@gmail.com


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