“A Senhora da Van” é o filme que assisti na Netflix num dia desses. Não se trata de algo extraordinário da indústria cinematográfica. Desconfio mesmo não ter tido grande público. Digamos que é uma película mediana, com atores igualmente em desempenho mediano, com cenários praticamente limitados a uma rua e seus moradores. Por aí.
O que então me fez destacar o filme a ponto de deixar aqui minhas impressões? Foi o tema e a abordagem que ele desenvolve. “A Senhora da Van” é uma obra mais do que cinematográfica; é uma obra literária em processo.
Explico. Começando pelo narrador. Na tela (ou melhor, na telinha da TV), o mesmo narrador lado a lado com seu duplo – roupas idênticas – conversa. Ou ambos conversam a respeito da história que vai sendo construída na figura da velha que tem por morada uma van. Assim ambos vão revelando-se ao espectador no duplo papel, desfazendo qualquer confusão inicial – um olha, o outro escreve. Cumprem os papéis de interagir com o mundo lá fora e, ao mesmo tempo, de criar a história a partir deste olha/escreve dentro da linguagem do cinema.
Na van, a senhora acomoda como dá toda a sorte de tralhas. Trapos, roupas, cobertas, comida. Ali vive, ali dorme, ali come, usando a calçada em volta do lugar onde estaciona sua velha van, ora frente a um prédio, ora frente a outro, dependendo da acolhida dos moradores donos da rua. É idosa, pobre, feia e suja. E cheira mal. Com tristeza, compartilhamos esta realidade em nosso cotidiano. Nada novo, portanto.
Na sequência, o narrador Sr. Bennet – seu único amigo – atua não só como o escritor, é também teatrólogo e ator.
Não escapa da nossa experiência de escritores, este arranjo de papéis que o filme apresenta. É o que fazemos diuturnamente enquanto atuamos na solidão da criação literária.
O filme, numa última análise, vem mostrar a dualidade de referências indissolúveis para o ato da escrita: a rua, o mundo e a realidade de um lado e o imaginário, a criação e o mundo ficcional do outro lado. Duas visões que se interpõem. Saber transferir com verdades e mentiras tudo isto em palavras para um livro, é o que pode garantir um texto de qualidade superior.
Deixo de trazer outros detalhes que o cinema apresenta e que o espectador poderá conferir. Talvez o filme não seja tão tentador para os cinéfilos. Porém, para os escritores, com certeza!
22/04/2019
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Jacira Fagundes
Jacira Fagundes é professora e escritora. A trajetória literária, encarada como ofício, teve começo em 2002, com a premiação do conto “Noite fria de vigília”, quando do lançamento do Prêmio Literário Nova Prova – 20 anos. Ficou entre os quinze autores selecionados e seu texto foi publicado em obra da Editora.
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