Literatuar
Literatura e interatividade: os ciberpoemas
Marcelo Spalding
Muito se tem falado sobre o fim do livro, e, por conseguinte, no fim da literatura. Mas tenho me dedicado a estudar o contrário: de que forma a literatura estará presente em outra mÃdia, no caso, a internet. Alguns teóricos da literatura, como Douwe Fokkema e Elrud Ibsch, em Conhecimento e Compromisso, chegam a admitir que a produção eletrônica de poesia e ficção não é impossÃvel e "possa até levar a novos gêneros interativos", apesar de entenderem que "as novas mÃdias prejudicam o papel dos livros e outras formas impressas". Não por acaso os autores utilizam o termo "interativo", pois a interatividade tornou-se sÃmbolo das possibilidades digitais já nos anos 80 e ganhou força com a evolução da World Wide Web nos anos 90.
Mas o que seria a interatividade? O que seria interativo? O computador, por sua "arquitetura sui generis", e tudo o que nele for publicado? Nesse caso, poderÃamos considerar um livro publicado em PDF, digamos Dom Casmurro, de Machado de Assis, como interativo?
Diversos autores abordaram a questão da interatividade, não sem antes problematizá-la. Marco Silva, em Sala de aula interativa, busca recuperar a origem do termo, distingui-lo do termo "interação", usado na psicologia e ciências sociais, por exemplo, e apontar as duas crÃticas principais a que o termo esteve sujeito desde sua aparição, a polissemia e a banalização. Já Alex Primo escreve seu Interação mediada por computador "a partir de uma insatisfação com as teorias e conceitos de 'interatividade'", preferindo abordar a questão de outro modo e retomando o termo interação para distinguir entre interação mútua e reativa. Aqui iremos utilizar o termo "interatividade", ainda que ciente de sua polissemia e banalização crescentes, por ser um termo familiar nos estudos literários para se referir à interação mediada por computador em obras digitais.
Alguns romances clássicos da literatura universal podem ter antecipado a chamada multilinearidade da era digital, mas estão, naturalmente, amarrados ao seu suporte, o milenar papel. O Jogo da Amarelinha, talvez ainda o mais notável, é um romance escrito por Cortázar em 1963, e é considerado a principal obra do autor. A professora Marta Hoppe Navarro afirma que vários tÃtulos de suas obras acentuam a tendência lúdica do notável escritor argentino, e define Rayuela ? seu tÃtulo no original ? como uma obra que "revolucionou a literatura latino-americana com um romance para ser lido em saltos, de um capÃtulo a outro, como se fosse o jogo da amarelinha que lhe dá o tÃtulo".
São algumas experiências contemporâneas de literatura on-line, porém, que têm chamado a atenção e atraÃdo para si o termo "interativo". Uma dessas experiências é o conjunto de ciberpoemas dos gaúchos Ana Cláudia Gruszynski e Sérgio Capparelli publicados no site Ciber&Poemas. O site foi desenvolvido no ano 2000 e utiliza a linguagem Flash, software profissional que cria animações para a Web. No site há duas seções de poesias, uma com 12 poesias visuais, em que o usuário pode simplesmente ver e deixar um comentário no mural de recados, e outra com 10 ciberpoemas, em que o usuário é chamado a compor o poema arrastando ou clicando em elementos visuais dispostos na tela.
Em artigo sobre o desenvolvimento dos ciberpoemas, os autores explicam que o trabalho foi dividido em três fases. Primeiramente, "foram criados 28 poemas visuais, convergindo tecnica e esteticamente texto escrito com imagens do design, da pintura e outros tipos de desenho". Na segunda fase, oito poemas visuais foram escolhidos para serem retrabalhados hipertextualmente por diferentes profissionais, e na terceira fase foi feita uma parceria com o estúdio W3haus para o desenvolvimento do site e o planejamento de mais alguns ciberpoemas.
No referido artigo, os autores mencionam alguns ciberpoemas, como "Zigue-Zague" ? chamado pelos autores de uma "narrativa interativa", pois há uma tela em que há opções dispostas em links para o usuário escolher a sequência ? e "Chá", este último destacado no design do site como "super interativo". Segundo os autores, "as possibilidades do hipertexto na ciberpoesia vão muito além da convergência de diferentes linguagens. Elas abrem também uma janela para a interatividade, isto é, a participação do navegador no poema", e o ciberpoema "Chá" mostraria algumas dessas possibilidades, estabelecendo uma "zona de diálogo com o leitor que, se quiser apreender o poema, deverá agir e reagir e a cada ação/reação recriar um poema novo".
Vamos nos deter um pouco nesse ciberpoema, em que o usuário vê na tela do computador uma xÃcara de chá vazia, um bule, um saquinho de chá e três imagens (um selo com um casal de beijando, estrelas e corações), que podem ser arrastadas para dentro da xÃcara. Quando o usuário estiver satisfeito, clica em "Pronto", e se tiver esquecido de colocar água ou de colocar o saquinho, será avisado para fazê-lo. Depois, a colherinha move-se na tela, mexe o chá e "então tem-se surpresas inesperadas, como as sonoridades dos ingredientes para o chá ou do bule de cujo bico vertem letras". A escrita do poema está na fumaça que sai da xÃcara, e realmente, dependendo dos três elementos que escolhemos colocar na xÃcara, essa fumaça tem formas, cores, movimentos e sons diversos. O texto, porém, curiosamente permanece o mesmo: "Deixe a infusão/ o tempo necessário/ até que os nossos aromas/ e os nossos sabores/ se misturem".
É visÃvel, em poemas como "Chá", o potencial criativo das ferramentas e mÃdias criadas a partir da nova tecnologia, mas parece fundamental questionarmos em que medida a interatividade de "Chá" é tão distinta daquela proposta por Cortázar há 45 anos atrás com seu Jogo da Amarelinha. Tanto em um quanto em outro o texto escrito permanecerá o mesmo independente das ações do leitor, sendo que em Cortázar ainda há uma possibilidade de quebrar a linearidade, enquanto em "Chá" o texto se apresentará em movimento mas como uma sequência linear. Afora isso, em ambos os textos a participação do leitor é incentivada mas dirigida, pois o leitor não poderá, por exemplo, criar um poema sem colocar o saquinho ou a água em "Chá", assim como não compreenderá a história de Cortázar se não seguir a numeração já previamente planejada pelo autor. Sem falar que tampouco poderá, o leitor, acrescentar novos elementos não previstos anteriormente, como outras imagens na xÃcara ou novos capÃtulos no Jogo da Amarelinha.
Dessa forma, poderÃamos questionar em que medida essa interatividade propagada pelo site transforma, de fato, o leitor de um ciberpoema em um leitor participativo, em uma espécie de co-autor de um poema como "Chá". Mas num artigo como este talvez o mais importante não seja definir se "Chá" é ou não um exemplo da "literatura interativa" preconizada por Douwe Fokkema e Elrud Ibsch, e sim perceber que há um movimento importante por parte de escritores contemporâneos em utilizar as novas ferramentas de comunicação para ampliar a participação do leitor, obrigando os estudos de literatura a revisitar conceitos sobre autoria e recepção surgidos exatamente entre os teóricos da literatura.
Se por um lado os ciberpoemas aqui visitados exageram ao se definirem como "super interativos" apenas pelos cliques, sons e movimentos, por outro lado, podemos ver um poema como "Chá" em linha com o sonho de Mallarmé ou os romances de Cortázar e Calvino, exemplares das tentativas criativas de trazer o leitor para dentro da criação e buscando, se não transformá-lo num co-autor da obra, pelo menos alterar sobremaneira seu tipo de participação.
Do Jogo da Amarelinha ao jogo do "Chá", a tecnologia evoluiu a passos largos e apresenta aos autores contemporâneos novas ferramentas, novas mÃdias com potenciais e possibilidades que precisam ser exploradas e conhecidas com o tempo. O clicar e arrastar das imagens é ainda um passo pequeno, tÃmido, como ainda pequena seria a composição de versos a partir de uma análise combinatória dos elementos dispostos na xÃcara. Demonstram, porém, que a literatura é mais do que o objeto livro e atravessará, sim, séculos e gerações através de gêneros interativos, gêneros multimÃdia e/ou gêneros hipertextuais.
Nesse sentido, para terminar, não poderÃamos deixar de citar duas frases emblemáticas que nos relembram a infinitude não do livro, não do homem, mas da literatura. A primeira, de Calvino: "no universo infinito da literatura sempre se abrem outros caminhos a explorar, novÃssimos ou bem antigos, estilos e formas que podem mudar nossa imagem do mundo". A derradeira, de Borges: "talvez me enganem a velhice e o temor, mas suspeito que a espécie humana ? a única ? está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptÃvel, secreta".
04/10/2019
Comentários:
Envie seu comentário
Preencha os campos abaixo.
Marcelo Spalding
Marcelo Spalding é professor, escritor com 8 livros individuais, editor de mais de 80 livros e jornalista. É pós-doutor em Escrita Criativa pela PUCRS, doutor em Literatura Comparada pela UFRGS, mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS e formado em Jornalismo e Letras.
Colunas de Marcelo Spalding:
Selecione
Vale a pena participar de Bienais do Livro? (18/09/2024) O uso de pseudônimos para o escritor (04/07/2024) O que faz um livro ter êxito em concursos literários (05/10/2023) "A novela é a história de um personagem, o romance é a história de um assunto": as diferenças entre novela e romance (14/08/2023) O ChatGPT e a Escrita Criativa (01/07/2023) Imparcialidade: utopia ou compromisso social? (09/06/2023) Novas voltas em torno do umbigo (02/01/2023) Entrevista com Marina Mainardi, vencedora do Prêmio Odisseia de Literatura Fantástica - Narrativa Longa de Fantasia (03/11/2022) 4 dicas para desbloqueio criativo (15/01/2022) Cursos de escrita on-line ao vivo — 13 dicas para aproveitar ao máximo (20/06/2021) Como funcionam, o que diferencia e como escolher um curso online (17/05/2021) A ambientação em textos futuristas (10/07/2020) A ambientação em textos históricos (10/05/2020) O nome das personagens (10/03/2020) A personagem mais importante de um texto (04/01/2020) Literatura e interatividade: os ciberpoemas (04/10/2019) Politicamente correto ou potencialmente ofensivo? (09/05/2019) Narrador e foco narrativo (12/01/2019) Capacidade de expressão X capacidade linguÃstica (26/05/2017) A personalidade linguÃstica e os diálogos (19/04/2017) Reaprender a olhar OU a praga dos celulares em shows (26/01/2017) Expansão ou expanção: por que um erro de ortografia cometido por um grande shopping é, sim, preocupante e grave (27/12/2016) O maior desafio do mercado editorial não é a distribuição (05/08/2016) “Temos de discutir sobre o que queremos com e dos nossos livros” (24/06/2016) “Uma escola sem biblioteca é uma escola mutilada” (17/03/2016) Os direitos do leitor (17/03/2016) "Uma única professora, comprometida e bem informada, salva a leitura numa escola" (05/02/2016) "A Literatura é um Poderoso processo de Humanização" (19/01/2016) José Saramago X Paulo Coelho (10/01/2016) Teoria da Literatura e Criação Literária (17/12/2015) Por que não tenho leitores, ouvintes, público? (29/05/2015) Por que insistir na carreira de escritor? (01/03/2015) A Feira do Livro de POA é muito mais que a Feira (03/12/2014) Oficina literária é como uma aula de piano, se aprende técnicas (01/12/2014) Para que servem oficinas literárias? (07/10/2014) A difÃcil diferença entre cultura, arte e entretenimento (26/07/2014) O mercado editorial sob a ótica dos escritores VII: escritora de Caxias mostra a força da literatura fora das capitais (20/06/2014) O mercado editorial sob a ótica dos escritores VI: "O importante sempre é o caráter do escritor e a qualidade de seus livros" (17/06/2014) O mercado editorial sob a ótica dos escritores V: "Sem o mediador, a leitura não se estabelece como valor e desejo" (12/06/2014) O mercado editorial sob a ótica dos escritores IV: A leitora que virou professora que virou escritora (10/06/2014) O mercado editorial sob a ótica dos escritores III: a escritora que conhece e-books como poucos também quer publicar em papel (06/06/2014) O mercado editorial sob a ótica dos escritores II: "Não me sentiria um escritor sem ter o meu nome impresso numa capa" (04/06/2014) O mercado editorial sob a ótica dos escritores (27/05/2014) O desafio de publicar (21/02/2014) Dicas para a criação de personagens na ficção (26/07/2013) Sobre a crÃtica ao texto (20/04/2013) A literatura infanto-juvenil que vem de longe (28/01/2013) Contos Gauchescos chega ao cinema (21/11/2012) 3 dicas do mestre Assis Brasil para a escrita criativa (25/10/2012) Literatura, Interação e Interatividade (24/08/2012) Uma nova forma de captação para projetos culturais (17/07/2012) O Guia Prático do Português Correto da L&PM (17/06/2012) O fim do livro didático (28/05/2012) Contra a Cavalgada do Mar (22/02/2012) A capacidade de expressão e o ensino de lÃngua portuguesa (02/02/2012) Entrevista com Jane Tutikian, patrona da Feira do Livro de POA (10/11/2011) O certo e o errado no ensino da LÃngua Portuguesa (07/06/2011) Yes, nós queremos preservar a lÃngua portuguesa (16/05/2011) História da leitura (VI): o iPad aponta o futuro? (14/04/2011) História da leitura (V): o livro na Era Digital (14/04/2011) História da leitura (IV): a ascensão do romance (11/04/2011) História da leitura (II): o códice medieval (10/04/2011) História da leitura (III): a imprensa de Gutenberg (07/04/2011) História da leitura (I): as tábuas da lei e o rolo (17/03/2011) Escritora fala sobre a vida literária em Osório (31/01/2011) O livro Toy Story para iPad: uma revolução? (07/01/2011) Prêmios, panelinhas, tapinhas nas costas e afins (13/12/2010) A contÃstica madura de Cleci Silveira (15/11/2010) Autobiografia de um ex-negro (31/10/2010) Por que os artistas devem dar seu trabalho de graça (27/09/2010) Luiz Antonio de Assis Brasil (08/09/2010) A quem interessa uma sociedade alienada? (31/08/2010) O fim do livro? (16/08/2010) Uma novela para ler de graça (20/02/2010) O videogame de Ricardo Silvestrin (25/12/2009) A arte de narrar a História (25/11/2009) Um papo histórico com Affonso Romano de Sant'Ana e Marina Colasanti (09/11/2009) Pelo fim do complexo de vira-latas (20/10/2009) Pelo fim do complexo de Vira-Latas (03/10/2009) O Guri de Uruguaiana (25/09/2009) Como será a literatura na internet? (16/09/2009) Cravo e Rosa para adultos e crianças (07/09/2009) Literatura e interatividade: do Jogo da Amarelinha ao Jogo do Chá (27/08/2009) A cauda longa dos artistas somos nós (11/06/2009) Quanto custa rechear seu CurrÃculo Lattes (05/03/2009) A Criação em tempos de Crise (19/02/2009) Dicas da semana para o Porto Verão Alegre IV (12/02/2009) Dicas da semana para o Porto Verão Alegre III (06/02/2009) Dicas da semana para o Porto Verão Alegre IV (06/02/2009) Dicas da semana para o Porto Verão Alegre II (30/01/2009) Dicas da semana para o Porto Verão Alegre I (22/01/2009) E a Turma da Mônica cresceu (15/01/2009) Aperte o play (14/01/2009) Ideia acordou sem acento (05/11/2008) Literatura é coisa pra jovem? (03/09/2008) Literatura é coisa para jovem? (03/09/2008) O inventário da dor de Lya Luft (24/06/2008) Geração Coca Zero (12/06/2008) Palavras e silêncio ao espelho (20/05/2008) Ideia acordou sem acento (11/05/2008) Literatura vira motivo de festa (26/03/2008) Olhos de morcego para enxergar além (13/03/2008) Burguesinha, burguesinha, burguesinha, burguesinha (06/03/2008) Preconceito LingüÃstico no Romance Cidade de Deus (10/02/2008) Cartas a um jovem escritor (28/01/2008) O que a greve dos roteiristas tem a nos ensinar (09/01/2008) Literatura policial ou literatura bandida? (03/01/2008) Por detrás dos números (24/12/2007) Sobre a milésima segunda noite (16/12/2007) Qual é, afinal, a melhor idade? (27/11/2007) Com a palavra, as gordas, feias e mal amadas (20/11/2007) Poder, sexo e fé na história dos vendilhões (20/11/2007) Escrever não é trabalho, é ofÃcio (20/11/2007) Sexo, drogas e rock'n'roll (13/11/2007) Livros do bem e do mal (13/11/2007) Um Jabuti para o miniconto (12/11/2007) Micronarrativa e pornografia (21/03/2006) O desafio de publicar (24/01/2006)
Os comentários são publicados no portal da forma como foram enviados em respeito
ao usuário, não responsabilizando-se o AG ou o autor pelo teor dos comentários
nem pela sua correção linguística.