Resenha
Onde moram os cães
Elenilto Saldanha Damasceno
O escritor gaúcho Cleo de Oliveira lançou, recentemente, seu terceiro livro de contos, "Onde moram os cães". O contista publicou seu primeiro livro em 2007, "Descontágio", pela Editora Scortecci, ao vencer o Prêmio Literário Asabeça 2006. O segundo, "Escuta essa voz", foi publicado em 2015, pela WW Livros. A nova obra é uma edição independente, produzida pelo próprio autor, cuidadoso na seleção de uma equipe de apoio no desenvolvimento de seu projeto editorial.
"Onde moram os cães" é uma coletânea composta por dezessete contos. Segundo o autor, os textos foram produzidos durante o perÃodo da pandemia, e todas as narrativas são ficcionais, mas algumas delas associam-se, de certa forma, a memórias e experiências pessoais na vida cotidiana, desde os tempos de infância. Essa impressão desponta, de fato, na leitura atenta dos textos e por meio da profusão de detalhes e elementos que recuperam e representam imagens e espaços relacionados a tempos passados, não datados, quando a vida humana era mais integrada à natureza. Nessa perspectiva cronológica e, por vezes, também cronÃstica, a maioria dos contos estabelece um universo diegético realista, pontuado e enriquecido por evocações a memórias coletivas e por surpreendentes e delicadas construções poéticas.
Um dos temas principais e recorrentes nas narrativas é a perda. Não à toa, os dois primeiros contos abordam esse tema: "Magia e perda" (já no próprio tÃtulo) e "Onde moram os cães" (que dá tÃtulo ao livro). Em ambos, há situações que se assemelham, mas provocam emoções e efeitos diferentes, os quais dependem da percepção sobre o que se fez ou sobre o que se deixou de fazer. As perdas também são latentes em outras histórias, como em "Dois olhos escuros" (perda da visão), "O melhor sol" (perda de identidade), "Mosaico" (o perder-se na vida), "O portão" (perda minimizada como ausência), "Meu tio matou o Brizola" (perda gradativa da sanidade).
Outro tema marcante e recorrente na coletânea é a violência de gênero, desgraçadamente impactante, representado em narrativas tensas e com efeito profundo. É o que pode ser percebido nos contos "Inexistências", "Meu tio matou o Brizola", "Caminhos", "Atrás das cortinas". Em contrapartida e em reação à misoginia, "A nova mulher" destaca-se como superação dessa situação, com elevado grau de lirismo e proposição da sororidade e do empoderamento feminino.
As potencialidades da expressividade poética da linguagem também despontam em outros contos, como "Dois olhos escuros", "O melhor sol", "A alma das pipas", "O portão" e o belÃssimo "Semeadura", o qual encerra a coletânea e deixa a leitora ou o leitor "em busca de novos perfumes".
Ademais, dois contos especÃficos e diferenciados merecem comentários à parte. "Humanimais" é uma narrativa muito visual e densa, com duas histórias entrelaçadas e dramáticas. "Desregresso" também é um conto denso e dramático, o qual estabelece interessante relação de intertextualidade com "Uma vela para Dario", de Dalton Trevisan, um dos maiores contistas brasileiros contemporâneos (falecido em dezembro de 2024, vinte dias após o lançamento de "Onde moram os cães").
Como foi mencionado anteriormente, os contos apresentados por Cleo de Oliveira são, predominantemente, realistas. O escritor, porém, também é apreciador da literatura fantástica e ressalta que, em seu novo livro, alguns contos de suspense flertam com esse gênero. É o que acontece, por exemplo, em "Dois olhos escuros" e "A hora da Mão Pelada". Por fim, outro elemento importante a destacar na obra é sua capa, com a bela ilustração de Julia Visentini de Oliveira (filha do autor), perfeitamente integrada ao texto que a inspirou.
Não só por haver colaborado como revisor nesse novo livro de Cleo de Oliveira, mas principalmente por apreciar e valorizar a boa Literatura, recomendo a leitura de "Onde moram os cães", publicação que reafirma a qualidade da criação literária desse autor capaz de transformar a matéria bruta e orgânica da vida em textos com caracterÃsticas, densidades e potencialidades tão diversas (metaforicamente, uma espécie de petróleo transformado em variados subprodutos). Cleo de Oliveira consolida, passo a passo, livro a livro, sua trajetória bem-sucedida como escritor com especial talento para, por intermédio do refinamento artÃstico operado pela linguagem, transformar essa matéria bruta da vida em Literatura de ótima qualidade.
13/02/2025
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Elenilto Saldanha Damasceno
Escritor, revisor, jornalista, editor e professor. Mestre em Letras/Estudos de Literatura e especialista em Literatura Brasileira (UFRGS), graduado em Letras e em Jornalismo (Unisinos). Participante do curso de formação de escritores e de oficina de revisão textual, preparação de originais e leitura crÃtica (Metamorfose).
Autor de "Curta ficção" (Metamorfose, 2023) e "Textos do Novo Testamento nas crônicas de Machado de Assis" (Dialética, 2021), obra finalista do Prêmio Ages 2022 na categoria não ficção. Autor de contos publicados nas coletâneas "Navalha, veneno, mistério" (Metamorfose, 2023), "Contos reunidos 2022" e "De volta aos anos 60" (Metamorfose, 2022), "Prêmio Off Flip de Literatura 2022: conto (Selo Off Flip, 2022), "A vida aqui não é fácil" e "Contos reunidos" (Metamorfose, 2021) e "Prêmio Off Flip de Literatura 2021: conto" (Selo Off Flip, 2021), nesta como finalista.
Revisor de "O que sei de você: histórias que poderiam ser suas", de Claudio Varela (Metamorfose, 2023) e "Olhos lilases", de Jonattan Rodriguez Castelli (Metamorfose, 2023).
Editor da revista Expressão Digital. Colunista nos sites Artistas Gaúchos, Escrita Criativa e na revista Paranhana Literário. Desde 2008, autor de artigos acadêmicos, artigos de opinião, crônicas, ensaios e resenhas publicados em jornais, revistas e sites.
Professor de LÃngua Portuguesa e de Literatura na Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha e professor no curso de formação de escritores da Metamorfose.
Mais informações em http://www.eleniltodamasceno.com .
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