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Literatura

Niilismo, literatura e monumentalidade
Cássio Pantaleoni

Se Deus está morto, então tudo é permitido”, escreveu Dostoievski, na voz de um personagem de Os Irmãos Karamazov.Niilismo. É disso que a passagem trata. Isso que está no “fundo” do pensamento contemporâneo, como uma doença contagiosa, afetando a literatura, a arte em geral. Pensamos: “Por que falar sobre isso?”. Essa própria questão é oferecida já na borda do abismo niilista. Indiferentes, estamos de caso com o niilismo mesmo quando evitamos pensá-lo.

A “indisposição” das massas para as profundas questões humanas, aquelas que visam pensar a essencialidade do mundo, ou que cogitam dizer algo definitivo sobre ele, apoia-se nessa referência à ausência de finalidade, nessa desconfiança da razão. O niilismo é precisamente isso: a situação em que o homem adota a resolução de com nada se ocupar.

Uma rápida observação é suficiente para constatar que, no discorrer contemporâneo, em larga medida, nós não nos demoramos mais nas reflexões sobre o sentido. Não demorar, aqui, significa estar sempre longe, sempre distante, sem bases. Estamos mais dispostos à superfluidade, à superficialidade.

O niilismo nos desonera. Nós logo o tomamos, pois subtrai a responsabilidade de nossos atos. O niilismo se dispõe a nós como destino. Devíamos mesmo consumá-lo, superando a noção de valor supremo, de absoluto, para então compreender que ali, em sua consumação, reside a nossa única chance – a de permanecermos ocupados com esse nada.

Todavia, as massas não conseguem consumá-lo. Por quê? Talvez por sermos vítimas do pathos da autenticidade. Mesmo assumindo a consideração do mundo-enquanto-fábula de Nietzsche, nós nos desviamos rapidamente de sua consumação. Glorificamos a fábula, concedendo a ela um novo valor”. O pathos da autenticidade fala tão alto que atribuímos à fábula o caráter de “mais verdadeiro”. Não é sem razão que ora se percebe a glorificação das culturas marginais, da cultura popular. Mas isso nos afasta radicalmente das possibilidades inerentes da consumação do niilismo.

Heidegger já percebera isso em seus estudos sobre Nietzsche, quando escreveu: “Porque se deixou enredar na confusão do conceito de valor e por não ter compreendido que a sua origem era questionável...”. Assim como Nietzsche, nós ainda não compreendemos que a consumação do niilismo constitui-se como “lugar de apelo para uma possível experiência humana” (cf. Heidegger).

Pensemos agora a literatura, pelo menos aquilo que diz respeito a ela e ao que a configura como tal: as possibilidades da linguagem. À luz do niilismo, o que significa interpretar? Será que mesmo as interpretações, desde a perspectiva niilista, com nada se ocupam? Com nada se demoram? Será a literatura, assim, mero falatório?

Nós usamos blogs, Twitter, Facebook para expor ideias.  Mas o que expomos é mera exposição. Há poucas ideias de fato. É apenas um dizer repetitivo, um falatório. Esse “falatório” visa apenas à atenção, àquilo que possibilita a troca. Nas palavras de George Steiner: “Tudo é feito para obter impacto máximo e obsolescência instantânea”. Nessa urgência de causar impacto, de chamar a atenção, adotamos um dizer aforista. Vivemos a época dos aforismos. (Lembro inadvertidamente do exemplo de uma grande amiga, a linguista gaúcha Aline Vanin: “Há pessoas que, pelo Twitter, tentam sintetizar pensamentos do momento, que são muitas vezes completamente irrelevantes”.)

O fazer literário na disposição niilista não visa ao êxito entendido como o direito de alcançar um âmbito de valores formais. Seu êxito reside em tornar problemático esse âmbito. Em tal circunstância, o fazer literário torna-se ironia autorreferenciada. Por essa via, o que alcançamos? Nada além de uma percepção distraída? Como podemos encontrar a “obra” na distração? Seria o fim das grandes obras literárias? O fim da “verdade” na literatura?

Amparado pelas considerações de Heidegger na conferência “A origem da obra de arte” (1936), cogito a ultrapassagem desse “estado” do pensamento através de uma atitude. É preciso pôr-se em obra da verdade – ocupar o lugar onde reconhecemos o caráter constitutivo de nossas experiências no mundo –, ali onde pontuamos algo que sempre chama de novo a atenção, enquanto novos “mundos” possíveis, numa reinauguração da história. Apropriadamente, busco Ezra Pound, em sua consideração acerca da arte: “Arte é novidade que permanece novidade”.

É preciso entender corretamente o conceito de Pound: novidade-que-permanece-novidade não como a estabilidade de um novo sentido que, sempre e toda a vez que se oferece ao observador, é redescoberto. Antes, como possibilidade ininterrupta de encontrar, ali onde se dá o sentido, faz-se uma experiência de verdade (mesmo que a verdade seja apenas uma fábula).

Pôr-se em obra da verdade é experimentar o envelhecimento como acontecimento positivo, determinando ativamente novas possibilidades de sentido. Mas de que modo se dá esse acontecimento?

Ainda em Heidegger: “Que nenhuma coisa é onde falta a palavra, mas um ‘é’ se dá onde a palavra falha”. Esse “é” é uma abertura, um evento. A abertura para a experiência da verdade é um evento, como se avista em uma passagem de Dostoiévski: "Há momentos, você chega a esses momentos, em que de repente o tempo para e acontece a eternidade". Esse acontecimento é o evento inaugural que “(...) institui os horizontes históricos-destinais de cada humanidade histórica” (cf. Heidegger).

Em literatura, o dizer original reside nesse “é”, nessa abertura, nesse evento. É ali que se aponta, que se faz aparecer o desvelamento de um mundo, aclarando, ocultando, libertando. E a proximidade do dizer com o ouvir se dá pelo movimento que coloca as regiões do mundo uma diante da outra: autor e leitor.

Para ultrapassar o niilismo, a literatura precisa de arrebatamento, não como algo que se dá como um além da palavra, mas como algo que era antes e independente da palavra, como efeito do silêncio. É desse silêncio que ressoa a nossa mortalidade, a nossa finitude. Ali, onde a linguagem naufraga, onde a palavra se quebra, precisamente ali, dá-se a poética. E nessa quebra da palavra encontramos a monumentalidade da obra. Entretanto, tal monumentalidade não se dá enquanto o que dura, mas enquanto o que resta, ou seja, como vestígio, como murmúrio, que sugere sempre e toda a vez a reinauguração do sentido daquele que a encontra. É o encontro com o monumento, esse “diante de” que nos arrebata. Na quebra da palavra, encontramos a monumentalidade do sentido, como evento proporcionado pelo escritor que se põe em obra da verdade (da verdade enquanto sentido de arrebatamento).

É claro que podemos nos associar ao pensamento niilista e aceitar que a verdade não é aquilo que funda e fundamenta. O que é a verdade, afinal? Talvez a verdade aconteça enquanto propriamente ameaça os fundamentos, enquanto ameaça as “verdades universais, absolutas”. Mas é possível que, enquanto ameaçados (os fundamentos), se possa pensar sobre eles? Como nos desviarmos dos fundamentos nesse “enquanto”? Ela, entretanto, pode de tal modo ameaçá-los (os fundamentos) enquanto pensamos sobre eles? Pensar a “verdade” como evento no qual reconhecemos a nossa mortalidade é pensar na possibilidade da impossibilidade de qualquer possibilidade. Essa é a verdade-enquanto-ameaça. É a mortalidade que ameaça mesmo a possibilidade de que este ou aquele fundamento seja o que efetivamente funda e faz vigorar o mundo.

Nesse sentido, a “verdade” é o que se dá sempre e toda a vez que estamos “de caso” com a mortalidade. Muito precisamente nesse sentido, o fazer literário (e, por que não dizer, o fazer poético?) é “pôr-se em obra da verdade”, olhar de frente o ser-para-a-morte e circunstanciar, na obra, a possibilidade da morte. Sobretudo, isso exige coragem. Essa é a única possibilidade que nos resta para ultrapassarmos o niilismo. Quando nos aproximamos da obra constituída pela disposição do “pôr-se em obra da verdade”, quando por ela nos interessamos, quando nos demoramos nela, fazemos reverência a esse monumento, esse que é o vestígio existencial de um corajoso.


03/10/2011

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Comentários:

Escrever sobre a verdade que surge justamente no momento em que a palavra falta. E a palavra falta quando nos deparamos com a mortalidade. A litertura contemporânea deveria ter seu momento alto quando interrompemos a leitura e as inquietações mais íntimas nos invadem, assim sem querer. É a manifestação mais pura do sentido da essência humana, num encontro entre autor e leitor. Foi isso que aconteceu aqui.
Marcia Rolim Serafini, Porto Alegre 28/03/2012 - 14:14
O sentido de arrebatamento que se confere aqui à "verdade" é, no meu entendimento, a experiência do corpo: corpo que corta o silêncio com a voz que fala/entoa/provoca e que, no seu cessar (por isso o fim do poema e do relato são tão importantes) traz o sentido da mortalidade citado, refaz a forma de uma vida, dando forma à voz. Por isso, num desenvolvimento possível pós-niilista, a arte literária vai em busca desse corpo onde mora o ritmo (batimento cardíaco, respiração) e se encontra com ele (Paul Zumthor,etc). Evita-se assim o incômodo sempre possível de se considerar a linguagem literária algo tão somente intelectual, tão apegado ao impresso (como os livros técnicos, p.ex.), tão desprovido de aspectos perceptivos, sensoriais, tão distante da emoção. Se a filosofia é feita de idéias feitas de palavras, a poesia é feita de palavras com idéias, imagens, melodias (Pound): corporalidades. Estas são o enlace com o mundo, poeira das calçadas, rugas no rosto, árvores ao vento, etc.
Telma, Florianópolis/SC 06/10/2011 - 09:51

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  Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni nasceu em agosto de 1963, em Pelotas, Rio Grande do Sul. Escritor, Mestre em Filosofia pela PUCRS e profissional da área de Tecnologia da Informação. Vencedor do II Premio Guavira de Literatura, na categoria conto, em 2013, com o livro “A sede das pedras”; finalista do Jabuti de 2015 com a novela infanto-juvenil “O segredo do meu irmão”. Segundo lugar na 21a. Edição do Concurso de Contos Paulo Leminski; duas vezes finalista no Concurso de Contos Machado de Assis, do SESC/DF; duas vezes finalista no Premio da Associação Gaúcha de Escritores (AGES). Desenvolve workshops sobre leitura, técnicas de escrita ficcional e filosofia aplicada à literatura. Obras Publicadas: “De vagar o sempre” – Contos – 2015, “O segredo do meu irmão” – Novela infantojuvenil – 2014, “A corda que acorda” – Infantil – 2014, “A sede das pedras” – Contos – 2012, “Histórias para quem gosta de contar histórias” – Contos – 2010, “Ninguém disse que era assim” – Novela – 2006, “Os despertos” – Novela – 2000.

cassio@8inverso.com.br
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