Como se sabe, neste ano, comemora-se exatamente cem anos do lançamento de Contos Gauchescos, obra obrigatória nos bancos escolares e acadêmicos gaúchos, mas que poderia estar no cânone de qualquer seleção de literatura brasileira. Mas volto ao tema porque foi lançado neste mês em alguns cinemas aqui do Rio Grande do Sul, ainda em comemoração aos 100 anos de lançamento da obra, o filme Contos Gauchescos, com direção de Henrique de Freitas Lima.
O filme traz cinco episódios com cerca de 25 minutos cada um (quando reunidos, chegam a 1 hora e 40 minutos, tempo ideal para exibição em cinemas). O primeiro desses episódios é um documentário sobre Simões Lopes Neto, e os demais são versões cinematográficas para os contos O cabelo da china, O jogo do osso, Contrabandista e No manantial.
Clipe do filme
O que de imediato impressiona o espectador, em especial se gaúcho ou gaudério, é a beleza das fotografias e a meticulosa reconstituição dos cenários e figurinos de época. Edu Amorim, o diretor de fotografia, valoriza o vasto pampa gaúcho com planos abertos que harmonizam na tela o azul do céu e o verde do pampa, cenário invariavelmente rasgado por belos cavalos e cavaleiros. O diretor de cena Pedro Zimmermann, por sua vez, trabalha com poucos cenários fechados para cada história, mas reconstrói esses cenários em detalhes que ajudam a resgatar o tempo representado pelas palavras de Simões.
Essa riqueza da ambientação revela, inclusive, uma parte do conto que só tínhamos em uma região incerta de nossa imaginação, surpreendendo, por vezes, o espectador que seja também leitor de Simões. Ocorre que a linguagem do cinema requer, por óbvio, a imagem, algo que nem a linguagem literária utilizada por Simões e nem a oralidade de Blau Nunes, por sua vez representada por Simões, priorizam, já que na oralidade, apesar de não haver o texto escrito, materializado, a narrativa se faz apenas de palavras, entonações, gestos, cabendo ao ouvinte criar em seu imaginário os rostos, cenários, expressões.
Por essa perspectiva, qualquer versão cinematográfica de uma obra literária é uma leitura possível da obra, jamais definitiva. A literatura comparada tem trabalho com a ideia de que toda adaptação é uma espécie de tradução, valendo-se do significado do termo em latim traducere, que significa “levar além”.
O risco de uma análise subjetiva como essa, portanto, é analisarmos uma obra cinematográfica pela leitura que fizemos da obra literária, considerando esse ou aquele personagem mais ou menos “fiel” ao texto.
Ainda assim, podemos afirmar que o leitor de Simões Lopes Neto se sentirá “vendo o texto”, pois Henrique de Freitas Lima procura manter seu roteiro apoiado no texto de Simões, algo que talvez seja possível pela própria estética do autor, que antes desse clássico foi um profícuo autor de peças teatrais. Assim, o encadeamento das cenas, a visibilidade das histórias já está no texto e o diretor soube levá-las à cena, preservando aspectos estruturais como a narratividade, a linguagem e o ponto de vista narrativo.
Do ponto de vista narrativo, a escolha de manter o foco narrativo do texto de Simões nas cenas capitais, mesmo que por vezes não tal foco fosse o mais comum para o cinema, também acrescenta muito ao filme. Vale citar, como exemplo, a cena em que a família toda de Jango Jorge observa sua chegada na estância, depois de muito atraso. Na cena anterior, Jango percebe o cerco dos castelhanos e o perigo iminente, partindo em disparada com seus amigos. Aí há um corte e vemos a família de Jango olhando para o horizonte, feliz com a chegada do homem. E a câmera permanece acompanhando os olhares daquela gente que, à medida que vê o cavalo se aproximando com Jango caído sobre ele, se desespera com o prenúncio da tragédia.
Tal inversão de foco narrativo traz um ganho de sutileza ao conto porque, assim como ocorre no conto, transforma o clímax não no tiro levado pelo herói, mas no desespero causado na família. Até porque as histórias de Simões não são histórias de guerras, tiros e assassinatos, são histórias de amor, ciúme, medo e desespero. Como os clássicos de todos os tempos e gentes. Como Shakespeare, Goethe, Machado.
Além disso, o narrador conduzindo os contos com seu linguajar peculiar, por vezes surgindo em background no meio da história, as tomadas longas e por vezes acompanhadas apenas da música ou do som ambiente e a precisão dos diálogos também ajudam a manter os contos próximos de uma estética simoneana.
A maior crítica, se cabe fazer alguma, é exatamente à ausência de tantos contos representativos do livro, em especial Trezentas Onças e talvez, em tempos ecológicos, O Boi Velho. Não que as histórias escolhidas não sejam importantes, mas as quatro têm em comum a tristeza, a morte, o desfecho trágico, passando para quem tem ali o primeiro contato com Simões que essa é a tônica de seus contos. Trezentas Onças, por exemplo, que inclusive inicia o livro, apresenta Blau com uma história comezinha, quase um chiste, culminando naquele ingênuo final feliz que abre caminho para as tragédias seguintes.
É evidente, porém, que era preciso fazer escolhas para levar a cabo um projeto tão audacioso como a filmagem de Contos Gauchescos, e o saldo é largamente positivo pela seriedade e qualidade do trabalho. Verdade que agora muitos e muitos alunos conhecerão Simões pelas telas. E alguns talvez o conheçam apenas pelas telas.
De nossa parte, ver uma obra centenária transformada em uma longa-metragem deve ser motivo de saudação tanto por revelar o renovado interesse pela obra quanto por demonstrar o vigor da produção cinematográfica gaúcha, gênero que produzirá as obras que serão motivos de efemérides movimentadas daqui a cem anos.
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