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Críticas

Uma novela histórica fluente

Por Vicentônio Regis do Nascimento Silva

Os duzentos anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil suscitam interesses diversos – seja na mídia, que aborda os benefícios trazidos por Dom João, seja na historiografia, que vê na oportunidade da data uma maneira de redimensionar a relevância do fato, seja na Literatura, que inspira a criação de romances, novelas, contos e crônicas.

Capa atraente e bem diagramada, “Vão pensar que estamos fugindo!”, da escritora gaúcha Valesca de Assis, convida para um passeio na história do Brasil.

Diferentemente de “Harmonia das esferas” – em que adotou um tom altamente reflexivo e sério, comprovado na linguagem polida e dialética que percorre todo o texto –, “Vão pensar que estamos fugindo!” narra as aventuras da fuga da família real portuguesa, desde a decisão de Dom João de abandonar Portugal, chegando ao barco em uma carruagem simples que sequer ostentava o brasão real, até sua chegada a terra firme, primeiro à Bahia, depois ao Rio de Janeiro.

Executada de última hora, a fuga não previu a fome, nem contava com a falta de higiene e de conforto das embarcações. A ausência de perspectivas claras sobre o destino dos tripulantes e dos ataques ou ameaças de doenças ou moléstias que poderiam facilmente se alastrar, além das tormentas marítimas, marcaram a longa viagem de um continente a outro.

Não se pode deixar de mencionar o amontoamento desumano e repugnante a que os passageiros (nobres, assessores, auxiliares, amigos e parentes) se submeteram durante o trajeto.

Embora classificada como literatura infanto-juvenil, “Vão pensar que estamos fugindo!” é uma leitura prazerosa aos adultos que procuram um texto fluente, dinâmico e engraçado. Bem trabalhado, trata de um fato histórico de maneira hilariante. Quase impossível não sorrir ao ler sobre a inútil argumentação da esposa de Dom João na angústia de manter parte de sua cabeleira. Numa epidemia de piolhos – ou na possibilidade de uma –, Carlota Joaquina se vê obrigada a ficar careca, assim como as demais mulheres.

O riso é uma constante do começo ao fim.

Os problemas enfrentados pelos tripulantes decorrem provavelmente da falta de iniciativa de Dom João em relação às políticas de Portugal. Embora amigo de Napoleão, o soberano português não se sente seguro ao presenciar a invasão da Europa pelas tropas napoleônicas. Se um dos aliados do ditador francês fora executado por suas tropas, que garantias Dom João poderia esperar? Se por um lado Portugal exime-se da responsabilidade pelas iniciativas napoleônicas sobre a Europa, por outro, mantém-se inerte, não firmando qualquer espécie de pacto com a Inglaterra que, naquele momento, mostrava-se parceira no combate ao avanço francês.

A indecisão de Dom João – que muitas vezes colabora na construção da imagem de um inútil acometido de parvoíce – arrisca os destinos da nação. A instabilidade e a insegurança apressam a mudança tresloucada.

Quando finalmente chegam, a família real e seus convidados de fuga são bem tratados, festejados, mitificados. Exercendo o reinado sobre um povo singular, constituído por costumes quase antagônicos aos da nobreza européia (comida, roupas, assuntos políticos, preocupações econômicas e diversidade étnica), os desterrados misturam a esperança ao resgate do poder, da riqueza e da boa vida.

Geralmente lembrado como glutão, covarde, indeciso e incapaz, o fim de “Vão pensar que estamos fugindo!” exibe novos pontos de vista na reflexão da figura do monarca português, abrindo discussão sobre sua habilidade de conciliação política. De início na disputa entre França e Inglaterra e, posteriormente, já no Brasil, com a instalação da imprensa e a fundação de um banco associados à abertura dos portos às nações amigas – entenda-se abertura dos portos à nação amiga: a Inglaterra – representam um avanço para as finanças do governo, mas não necessariamente uma melhoria ao caixa do estado.

Seria Dom João um habilidoso estrategista político?

Em poucas palavras, “Vão pensar que estamos fugindo!” alcança toda a família, mesclando momentos de aprendizagem histórico-literária ao divertimento mantido pela linguagem fluida, corrente e bem trabalhada de Valesca de Assis.

Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 5 de junho de 2008.


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