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Literatura

Tudo o que eu queria te dizer
Luiz Paulo Faccioli


Martha, minha cara,

espero que estejas bem. Voltando das férias? Onde foram este ano? Sei delas porque durante todo o mês de fevereiro tua coluna na página 3 da Zero Hora das quartas permaneceu vazia e puseram lá um aviso com o motivo da ausência. A Paula Taitelbaum, do alto de sua meiguice tão talentosa, assumiu teu lugar domingueiro no caderno Donna do mesmo jornal, e não fez feio. Isso também já não é novidade. (Mas me conta: qual a sensação de ler outra pessoa escrevendo no espaço da gente? Se há por estas plagas um colunista pródigo em fazer escândalo toda vez que isso acontece, não consigo te imaginar sendo irônica ou indelicada com quem te substitui apenas interinamente. Agora, deve bater um ciuminho, não? Ninguém consegue ser tão isento.) De qualquer forma, nem deu para sentir muito a tua falta: entre os livros que levei na bagagem das minhas próprias férias, pus o Tudo o que eu queria te dizer. Confesso que dessa vez estava mais curioso do que de costume por culpa do ensaio que o Prof. Flavio Loureiro Chaves escreveu para o caderno Cultura da mesma Zero Hora — que, como vês e não sem motivo, muitos chamam de “diário oficial” aqui no Sul. E acabei tão envolvido pela idéia que decidi por escrever esta carta. Acho que tem tudo a ver, não te parece?

Tive o privilégio de assistir de perto ao teu flerte com a ficção, Martha, pois há muito acompanho tua trajetória. Primeiro veio a poesia — a qual nunca abandonaste —, e muitos afirmam que nela está o melhor de teu trabalho (um dos entusiastas da Martha poeta é justamente o Prof. Loureiro Chaves). Depois, surgiu a cronista de Zero Hora e O Globo, o que te fez conhecida em todo o Brasil. Quem te lê semanalmente sabe que tens como poucos a coragem de pôr o dedo em feridas, sem medo de dizer o que pensas e sem preocupação com o inevitável coro de discordantes que sempre acompanha tuas crônicas mais polêmicas. Lanças a bomba mas evitas sempre polemizar. És de uma elegância rara. Lembro bem quando começaram a te cobrar uma obra de ficção. E lembro também qual era tua invariável resposta: não te sentias à altura do desafio. Essa insegurança veio demonstrar sabedoria, pois, parafraseando uma querida parenta minha, ficção não é biscoito. Que os politicamente corretos não estejam espreitando estas linhas, mas existe, sim, vocação de ficcionista. E até descobri-la, o melhor a fazer é ir mesmo com muita calma.

Aí, a surpresa: em 2002 lanças Divã e com ele também estréias numa editora nacional e de maior porte, a Objetiva. Divã fez sucesso. Pensaste originalmente num monólogo para teatro, e o livro acabou virando peça, encenada pelos quatro cantos com Lilia Cabral no papel da quarentona Mercedes. Chegavas finalmente na ficção? Pois olha só o que encontrei furungando na internet, na entrevista que concedeste à indefectível Zero Hora:

“— Considero Divã um livro de transição entre a crônica e a ficção. Não poderia dizer ‘é meu primeiro romance’. É uma tentativa de ficção. Existe um personagem, a Mercedes. Mas as idéias dela têm muito a ver comigo.”

A essa franqueza podes creditar outra de tuas grandes virtudes como escritora. Diante dela, só me resta ser sincero também eu: não li o Divã, pois tive sempre medo do que iria encontrar. Embora estivesse curioso para saber como tinhas te saído, preferi aguardar pelo seguinte. Coisa mais difícil de explicar... Pensando bem, acho que acreditei cegamente quando falaste em “tentativa de ficção”. Acontece que não me servem meras “tentativas”, quero ler uma obra já pronta e madura. É isso: penso que não estavas lá muito convencida do que tinhas conseguido, e acabaste me fazendo desacreditar do livro por antecipação. Mas chegou então Selma e Sinatra, com o qual me deparei numa livraria da Av. Paulista ainda antes do lançamento oficial. Num impulso, comprei-o para ler durante a viagem. Gostei do resultado. Trata-se de uma obra ficcional pronta, talvez ainda não madura, mas que funciona. Vou ser sincero uma vez mais: gostei, sim, mas não me entusiasmei. Algo me dizia que tinhas bala na agulha para ir muito além. Sempre foste uma leitora compulsiva e criteriosa, mostravas agora dominar a ficção, faltava o pulo-do-gato. E ele veio enfim com as cartas-contos que compõem teu novo livro. E justamente com o conto, Martha, talvez o mais difícil dos gêneros em prosa. Vale aqui repetir: o conto está para a literatura assim como a corrida dos 100 metros rasos está para o atletismo.

Tudo o que eu quero te dizer é que te saíste melhor do que a encomenda nessas cartas de mentira que reúnes em teu mais recente trabalho. Como sabes, a forma epistolar é uma das clássicas do conto, embora não seja lá tão freqüente. Agora, acompanha meu raciocínio: quem escreve uma carta tem a opção de escolher o que quer contar e o que quer esconder de seu destinatário. Depois, o humor do missivista acaba revelando sempre mais do que ele pretende revelar. Por último, uma carta pessoal terá sempre um componente emocional que muitas vezes o redator tenta dissimular. Nem é preciso dizer que esse jogo de esconde-revela é um dos segredos mais caros do bom conto — muito especialmente dos narrados em primeira pessoa. É aí onde eu queria chegar: uma carta pode muito bem ser lida como um conto. Digo isto porque acredito que tenhas alcançado o conto por intuição. Pois, se me contassem que estavas trabalhando num livro de ficção, iria imaginar logo um romance, uma peça de teatro — o óbvio, enfim —, jamais uma coletânea de contos (ponto para ti, zero para mim). Não por julgar que não tivesses competência, muito pelo contrário, mas por uma questão de estilo. A bordo do “eu” personalíssimo que empregas em teus poemas e crônicas, corrias o risco de te tornar escritora de um único personagem: tu mesma, a Martha Medeiros que assumidamente se traveste de Mercedes. É certo que em Selma e Sinatra já avanças por outros caminhos, fugindo dos dilemas íntimos para colocar personagens em conflito, mas o universo ainda é limitado. Tenho uma convicção pessoal de que um bom conjunto de contos requer que o escritor vista a pele de múltiplos narradores.

Mas o susto não foi o de te ter descoberto uma contista — aliás, para falar a verdade, essa idéia só me ocorreu quando o livro já ia bem avançado. Sequer foi um susto: tratou-se de nocaute mesmo (olha aí Cortázar e sua definição sui generis). E logo na segunda carta, quando o adolescente André escreve à mãe do amigo Lucas, morto num acidente provocado por ele, André, sem ainda entender o que de fato aconteceu e tentando se desculpar. A história é de uma simplicidade tocante, e a carta põe a nu uma dor tão grande que o estômago acusa o soco na hora. Na quarta carta, Clô escreve ao marido já morto, num misto de nostalgia e queixa. No embalo do clima intimista, surge então uma pequena pérola:

Querido, me sinto envergonhada por estar tão enferma sem estar doente. O nome disso é decadência. Não controlo mais as minhas vacilações. Sou um corpo a serviço da humilhação.

Ainda não completei os 50 — falta pouco agora —, mas consigo avaliar muito bem o estado de espírito de nossa Clô ao fazer uma confissão dessas. Já as duas cartas escritas por Leila, uma ao capeta e outra simulando a resposta, passam ao largo de ser divertidas. Sarcásticas, sem dúvida, mas também reveladoras do ânimo próprio de quem já jogou a toalha e tenta agora a salvação pelo ridículo.

O livro avança, e começam a surgir as sempre delicadas relações familiares. E aí, Martha, dás um show. Dentre todas, a carta que mais me comoveu é a que Taís escreve à mãe. São quatro e quinze da tarde, e nenhuma criança apareceu ainda para a festa de aniversário de Luana, marcada para as quatro. Na impotência de salvar a filha do desapontamento, Taís começa a descontar na mãe suas próprias frustrações, tentando conduzir um tardio acerto de contas que é traído desde o início da carta:

Mãezinha,
como é que você nunca me avisou que era tão difícil ser mãe.


Uma simplicidade que beira o clichê e que transformas magicamente em literatura. Talvez porque seja preciso muita ousadia para ser tão simples. Nessa mesma linha, outro destaque é a carta desesperada que Dinorá escreve à irmã Graça contando as dificuldades que passa para atender à mãe idosa e ranzinza e cobrando dela suas responsabilidades de também filha. De novo, uma história que todos já viveram em algum momento, ou pelo menos conhecem alguém que a tenha vivido. Por isso mesmo é que só precisas de quatro páginas, em letras mais graúdas que o normal, para construir duas personagens fortes, Dinorá e a mãe, e uma coadjuvante, Graça, cuja ausência a torna não menos expressiva.

Só agora me dou conta, Martha, de que o livro ainda nem chegou na metade! Mas não penses que as cartas desse ponto em diante não me agradaram. É que aquelas duas cutucaram mais fundo. Eis a diferença. Outros leitores, por certo, elegerão outras preferidas. Porque, como bem assinala o Fernando Eichenberg na orelha do livro, “há cartas excelentes, outras muito boas e nenhuma mais ou menos”. (Fiquei cismado apenas com o desfecho de uma, Martha, uminha só, um único instante que não me pareceu real em todo o livro. Mas é tão pouco diante do todo que nem vou apontá-lo. Aliás, nem deveria ter tocado no assunto. Por sorte consegui aqui emendar a tempo um par de parênteses.) Eichenberg diz também que este é teu melhor livro. Não há como discordar dele. Com Tudo o que eu queria te dizer não só te consolidas como ficcionista, demonstrando dominar o conto, mas consegues isso do teu jeito: pondo o dedo na ferida. A Martha Medeiros de sempre.

Para o final, reservaste outra surpresa: a carta que encaminha à tua editora os originais do livro e onde explicas tua intenção. Reza a cartilha que os alicerces de uma obra devem ficar para todo o sempre bem escondidos. No teu caso, até esse pecadilho revela-se gracioso e pertinente.

Disse lá atrás que as cartas eram “de mentira”. Acho que quem mentiu fui eu. Tuas cartas são de verdade. E, por isso mesmo, literatura da mais fina espécie.

Agradecendo mil vezes pelo prazer que me proporcionaste, segue meu abraço afetuoso,

LP


Trecho:

Denise, rogo por sua sabedoria, que sempre foi maior que sua ambição. (...) Mãe é uma espécie de Nossa Senhora que nos impede a selvageria e o urro, ela mantém nossas emoções no lugar. Cabe a nós, quando ela se vai, concentrarmo-nos no esforço de seguir fazendo de conta que somos maduros. Ninguém é, e a orfandade é um álibi tentador, ela justifica que nunca mais paremos de chorar. Mas pare. Pare agora de chorar.

Publicado originalmente em Rascunho, edição de março/2008

15/04/2008

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  Luiz Paulo Faccioli

LUIZ PAULO FACCIOLI nasceu em Caxias do Sul em 1958 e lá viveu até 1977, quando mudou-se para Porto Alegre, cidade onde mora atualmente. É músico, compositor, juiz Allbreed e Instrutor pela The International Cat Association — TICA. Autor de Elepê (contos, WS Editor, 2000), Estudo das Teclas Pretas (novela, Record, 2004), Cida, a Gata Maravilha (infanto-juvenil, Galera Record, 2008) e Trocando em miúdos (contos, Record, 2008), participou das antologias Porto Alegre: curvas e prazeres (contos eróticos, WS Editor, 2002), Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê Editorial & eraOdito editOra, 2004) e 35 segredos para chegar a lugar nenhum (crônicas, Bertrand Brasil, 2007), entre outras. Integrou o grupo Casa Verde, participando das seis coletâneas lançadas pelo selo entre 2005 e 2008: Fatais, Contos de bolso, Contos de bolsa, Era uma Vez em Porto Alegre, Contos de algibeira e Contos comprimidos. É crítico literário, colunista de literatura da Band News Porto Alegre e colunista do portal Artistas Gaúchos.

lpaulof@terra.com.br
www.luizpaulofaccioli.com
twitter.com/lpfaccioli


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