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Literatura

O narrador apesar de si mesmo
Paulo Bentancur

Já é suficiente mérito um livro nos roubar a indiferença. A maioria não rouba. As duas frases anteriores bem que poderiam fazer parte de maisquememória: caderno europeu de viagens, romance de Marcelo Backes (Record, 400 págs., R$ 50,00). Se não fazem é porque o autor – mais que o romancista, inoculado definitivamente pelo insidioso ritmo frasal do pensador, do observador moral, político e estético – achou outras mais explosivas e mais pessoais pelo caminho. E que caminho.

Sendeiros com jardins (trata-se da Europa, boa parte do livro, ¾, a Alemanha) que se bifurcam e levam aonde o leitor, ávido por desventuras, atropelos, choques, revelações, leitor acostumado a encarar odisséias ou a atravessar densas confissões, nunca chegaria. Nunca? Nunca. Terras de sempres que Backes desestabiliza, com seu olhar duplo, paradoxal, numa narrativa que adota um tom mesclado entre o ensaio e a crônica, aliviando o pé (ou a pata, já que uma das partes em que se desdobra para revelar em duas óticas, é um cavalo, burro, metafórico e, às vezes, nem tanto assim) para, com o palatável do humor, ainda que corrosivo e corroído – trata-se de um homem exposto e de seu mundo absolutamente sem fronteiras –, refazer às avessas a viagem do explorador. No passado, o europeu, superior, nos trópicos infestados de doenças e riquezas naturais. No presente, o nativo dos trópicos, descendente de alemães, investe do Terceiro para o Primeiro e Segundo Mundos.

O “romance” refaz caminhos nos quais a cultura, sobretudo a literária (a científica, sempre sacudindo as consciências e o entorno, recebe a atenção devida), põe em xeque quaisquer possibilidades comparativas. Sacode alicerces e revela grandezas disfarçadas à sombra de monumentos vazios.

Toda viagem, em tese, é transformadora. Ou utilitária. No caso de Backes, real, a viagem foi uma estada de seis anos na Alemanha. Trouxe um título na bagagem e uma solidez na formação que durarão até o fim de seus dias. Fortuna impossível de classificar, quantificar, sequer descrever. Emergindo da profundeza de todos os oceanos e mares pelos quais passou, o escritor propõe a cada capítulo a resistência frente ao que seriam maremotos para muita gente. A ironia afia sua navalha do início ao fim. Não sem temperos de melancolia, e de decidida investida carnal em íntimas batalhas em que o amor soçobra, afunda.

Caleidoscópico e rigoroso

Clara é a natureza desse memorialismo: enganador, criativo, inteligente demais para se contentar com a óbvia recuperação de fatos de cuja verossimilhança Backes não hesita em parecer até mesmo gabar-se mas jamais chorar no próprio ombro (não se trata, a imagem, de uma impropriedade: afinal, dois são os narradores, se digladiando, gozando a cara um do outro). E a maioria dos fatos, reconheçamos, acaba em idéia, reflexão, hipótese, tornados pela densa trajetória do espírito outra matéria para além do concreto. E com isso, também, lançando a cortina típica do dramaturgo num tom sem o peso da fúria de um Bernhard nem o desespero de um Strindberg mas com a acidez do primeiro e o poder de sugestão do segundo.

Backes só parece não aspirar à poesia, entendida esta como o ritmo desbastado de qualquer possível digressão. Ao contrário, ele perde-se intencionalmente nas possibilidades das cenas e idéias que evoca e traz à luz de páginas tão inflamadas. Mas seu fogo é severo. Seu fogo (o erotismo aí comparece diversas vezes) desafia e não se mostra lento, mas rápido, queimando em meio ao frio do cenário e jamais caindo na tentação fácil de incensar a imagem de seus mestres (aos quais ele não reclama paternidade, sempre se mostrando independente e, ao mesmo tempo, de uma rara iconoclastia, trazendo para sua voz solitária o eco dos que o antecederam sem, repito, pagar o pedágio do deslumbramento).

Aos 33 anos, idade em que escreveu e publica essas memórias dilapidadas pela ficção que as norteia, as salva do pessoalismo estreito, as inflama e as formata para o leitor desejoso de tramas, Backes atinge o que para Dante, citado na abertura e algumas vezes no livro, é a plenitude, o meio do caminho, o começo da maturidade. Pede um Virgílio e uma musa que seja um pouco mais eterna (ou menos provisória, passageira). Regressando ao Brasil, entende que é aí que a viagem começa, quando pode então projetar os seis anos anteriores, como uma fatia – e que fatia – de vida. Refaz esse tempo que não calaria nunca e que, num crítico, num polemista, num pensador com a coragem (maior ainda porque espremida por informação em quantidade e em densidade) do autor de Estilhaços (Record, 2006), resulta em um relato caleidoscópico e, paradoxalmente, rigoroso.

A opção, ao menos gráfica, para a capa e páginas iniciais, por minúsculas em todo o título e subtítulo; o destaque para “caderno europeu”, revelando a intimidade do caderno com o pronome pessoal arrancado da primeira sílaba da palavra “europeu”; a opção por um gênero que não é menos que a vertigem no ensaio sendo engolido pelo romance e vice-versa; a profusão de soluções narrativas e dissertativas; e mais o título principal, uma só palavra, matéria de ferreiro, de tanto bater na bigorna sobre três palavras até fundi-las numa única – elementos a demonstrar que Marcelo Backes não vê saída senão no risco e não escreve para desculpar-se nem para culpar.

Sua literatura vai além daquilo a que nos acostumamos. Fala de gênios e fala do pinguço da província. Numa horizontalidade que engana e, assim, surpreende: não se deixa ver como um discurso arrastado. Antes, arrasta consigo o plâncton das épocas, dos lugares, incluindo desde uma cidade de 130.000 habitantes em cuja universidade passaram 42 prêmios Nobel até um modesto município da região missioneira do Rio Grande do Sul, onde Marcelo viu as primeiras estrelas, as vacas, a pobreza. E não confundiu aquilo com a realidade possível nem precisou, para ir além, enterrar o princípio no qual só havia luz, alguma fumaça e praticamente nenhum verbo. “Sim, cheguei a pintar, além de vigiar as vacas no pasto.”

Publicado originalmente no Estado de S. Paulo e enviado pelo autor

04/05/2008

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