Flávio Luís Ferrarini, autor de vidas minúsculas de
vila faconda (Zouk, 128 páginas, R$ 21,00), já foi cumulado
de rasgados elogios por críticos como José Paulo Paes e Marcelo
Backes ao longo dos mais de vinte anos em que se dedica às letras - mas,
apesar disso, jamais conquistou uma posição de destaque e tem
um público inversamente proporcional ao talento que quem conhece o que
assinou lhe atribui. vidas minúsculas de vila faconda (2007), à
altura de Minuto Diminuto e A Captura das Águas, suas obras-primas, é
uma boa oportunidade para se tomar contato com a riqueza metafórica e
epigramática de um poeta e prosador que, à margem do sistema literário,
publicou tudo o que escreveu por conta própria ou sob a chancela de selos
artesanais. A conseqüência mais evidente é que poucos sabem
quem é Ferrarini e só é possível encontrar alguns
dos títulos que constam de sua bibliografia com extrema dificuldade,
embora ele tenha construído uma trajetória impressionante - o
que a receptividade calorosa de um que outro leitor seleto parece traduzir,
a começar pela saudação entusiasmada de Paes, um crítico,
poeta e ensaísta de exceção.
O interessado em desbravar o mundo cheio de imagens sutis de Ferrarini, contudo,
é recompensado com folga. Os livros são numerosos: excetuadas
as participações nas coletâneas Quando as Folhas Caem e
Letras do Brasil (1984), em poesia, sua carreira individual teve início
com Volta e Meia um Poema na Veia (1985), também em poesia, a que se
seguiram Uma História Sem Elos (1986), novela, Olho Vermelho no Centro
do Espelho (1988), Minuto Diminuto (1990), poesia, Cogumelos Amarelos - Epigramas
(1994), Crônicas da Cidade Pequena (1995), A Captura das Águas
(1996), novela, Outubro Sobre Arco-Íris (1999), poemas em prosa, Apontador
de Indiferenças (2000), crônica, e o recente vidas minúsculas
de vila faconda (2007), novela, todos adultos. O Segredo de Ogliver Nut, Roger
Bispo e a Deusa Hathor (2003), Aventuras de um Ladrão Aprendiz, De A
a Zoar (2005), O Morro do Chapéu do Diabo e O Segredo do Diário
de Pati (2006) pertencem à vertente infanto-juvenil do autor gaúcho.
Outras duas coletâneas - Matrícula Dois (1998) e Poetas do Rio
Grande do Sul (2000) - completam a lista.
Nascido em Travessão Paredes, no interior do que hoje é o município
de Nova Pádua, Ferrarini, de 46 anos, vive em Flores da Cunha, mas trabalha
como publicitário em Caxias do Sul. Tem na gaveta cerca de três
centenas de poemas inéditos, que não pensa em organizar em um
tempo próximo - a dificuldade de publicar versos e a ausência de
interlocução o fizeram se conformar com os leitores-mirins, aos
quais fala em palestras nas escolas da região serrana. É quase
nada quando se verifica que ele poderia ocupar espaço nas estantes de
todo o País e ser citado - e recomendado - por quem se deleita com literatura
de qualidade. As coisas, porém, nem sempre acontecem conforme se espera
e Ferrarini segue a "vida minúscula" dos personagens do livro
mais recente que divulgou. Carlos Nejar e Luís Augusto Fischer também
já o louvaram, o que, na prática, não alterou esse panorama.
Os editores, aliás, merecem um puxão de orelhas pela desatenção
ou obtusidade com que se comportam em casos como o do criador de A Captura das
Águas - e de outros nomes, que correm pelas beiradas, feito Roberto Velloso
Eifler (para ficar com outro gaúcho).
Vidas minúsculas de vila faconda se assemelha a um conjunto
de contos que, lidos em série, forma uma novela (as definições
catalográficas se revelam deficientes para dar conta do que Ferrarini
produz, um híbrido de poesia e prosa). A opção gráfica
de utilizar sempre a minúscula - inclusive em nomes próprios e
no início das frases - se deve ao fato de que as biografias dos tipos
que ele retrata são trajetórias sem qualquer relevo, existências
comuns de toda cidadezinha interiorana. A tal "vila faconda" é
vista por meio de cinqüenta e tantas almas no período de cem anos,
de fins do século XIX até fins do século XX. Os achados
se sucedem: "na casa esparadrapada, com a chaminé alta, como um
periscópio a espreitar vila faconda, o fogão queima a memória
do cinamomo, quando nasce carlin briscola", "nas mãos de pierin,
as vértebras do carvalho tomam formas de tinas, cubas, barris, dornas
e pipas. as vasilhas bojudas conservam a saúde do vinho" e "contudo,
adelino é um mentiroso de antepenúltima categoria. os peixes que
fisga no rio turvo crescem na medida em que a linha da mentira vai se esgarçando",
retiradas a esmo, dão uma idéia da força imagética
e do poderio irônico de sua imaginação.
Pequena antologia de um mundo povoado por imagens sutis
tarde de domingo
a tarde de domingo é uma teta caída
cidade pequena
as casas na cidade pequena
são vacas deitadas à sombra
as ruas são cobras tristes
esticadas ao sol
na cidade pequena as línguas
são enxadas que carpem intimidades
como cobras tristes
tristes como as vacas deitadas
na cidade pequena as intimidades
são roupas esticadas no varal
confissões de pequenas cobras
sobre as vacas deitadas
os rostos na cidade pequena
são molduras tristes
como cobras à sombra
das janelas das vacas deitadas
na cidade pequena são os postes
que vigiam as cobras das vacas
se a língua neles encosta
os postes desabam
desabam os postes na cidade
pequena de vidas menores
sobre as cobras tristes
à sombra das vacas deitadas
insônia
meu quarto tem quatro metros de largura
por seis metros de noites inteiras sem sono
meu quarto tem as paredes pintadas de branco
e negras cortinas de noites passadas em branco
meu quarto tem um pé de cinamomo em frente
e um cão que late a noite toda dentro do meu sono
falsidade
uma melancia rindo verde por fora
sangrando vermelho por dentro
(Minuto Diminuto)
Desgaste
A delicadeza é o lado mais áspero da lixa
Bumbo
A bandeira sobre no mastro
Ao som da banda da escola
As lembranças descem marchando
Pelos cantos dos olhos
(A saudade é um bumbo que atua
no lado esquerdo do peito)
(Cogumelos Amarelos - Epigramas)
pierina collazion ferraro
o mês de julho vem perdendo as pernas quando nasce, na província
de
mântua, na itália, pierina collazion. no ano seguinte, aos seis
meses
de idade, cruza o atlântico de navio. chega à vila faconda em
fevereiro de 1889. na idade dos oito anos, pierina já defende o seu de
comer com uma enxada, no cabo da qual acaba com os braços magrelos.
aos dezesseis já prepara pratos referentes a festas em honra ao
padroeiro da vila, são paulo, que atua contra mordeduras de cobras.
aos dezessete, pierina dá o ler e escrever aos facondenses, no grupo
escolar pedro avec, prédio de madeira de dois pavimentos, enquadrado
nos fundos da igreja matriz. na idade dos dezoito, pierina orquestra
panelas, talheres e lousas. Aos dezenove, foge de casa para amar e ser
amada por pierin ferraro com quem tem quatro filhos, vincados pelo
desnomear. na idade dos trinta e seis anos, pierina collazion ferraro
começa a passar a limpo as microvidas dos conterrâneos de existir
pitoco. os dados biográficos dos facondenses, linotipados nas linhas
de um velho caderno, com mais orelhas do que tem de pés uma
centopéia.(...)
(vidas minúsculas de vila faconda)
(Texto publicado no Jornal do Comércio - Caderno Panorama, Literatura,
19/03/08)
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