As fraudes na captação de recursos da Lei de Incentivo à
Cultura (LIC) monopolizaram as atenções da comunidade cultural gaúcha
nos últimos dias. Responsáveis por empresas produtoras culturais
teriam falsificado assinaturas dos três últimos secretários
de Cultura do Rio Grande do Sul, a fim de captarem recursos para projetos que
não haviam sido aprovados - ou aprovados com recursos menores - pelo Conselho
Estadual de Cultura (CEC) do RS. Como é sabido, a LIC autoriza as companhias
privadas a abaterem até 75% do valor do patrocínio na forma de crédito
fiscal presumido de ICMS. Mas as produtoras precisam antes obter aprovação
da Sedac-RS e do CEC. As denúncias acabaram respingando até mesmo
na presidente do CEC, Mariângela Grando, acusada de incluir gastos irregulares
nas contas das verbas captadas pela sua empresa através da LIC. Os casos
denunciados pela imprensa estão demonstrando que as prestações
de contas de muitas empresas beneficiadas pela LIC não resistem a uma auditoria
mais séria.
O imbróglio serviu também para tornar pública uma disputa
que já vinha se travando nos bastidores entre a secretária da
Cultura, Mônica Leal, e Mariângela Grando. Aliadas no início
do governo Yeda Crusius, em 2007, ambas haviam se empenhado em tentar retirar
o comando da Cinemateca Paulo Amorim das mãos da Associação
de Amigos da Cinemateca para entregá-la ao grupo de Mariângela.
Até mesmo um termo de compromisso com a empresa de Mariângela,
estabelecendo um prazo de 30 dias para assinatura de um contrato a partir do
qual a Cinemateca seria administrada pela nova gestora, chegou a ser assinado
com a Associação de Amigos. Prova contundente da parceria entre
a secretária e Mariângela foi a indicação de Joaquim
Pedro Ramos Pereira, colaborador na empresa de Mariângela, para os cargos
de diretor da Cinemateca e de diretor-presidente do Instituto Estadual de Cinema
(Iecine) neste mesmo período. Tudo se encaminhava para a transferência
do comando da Cinemateca para a empresa de Mariângela, como denunciava
à época a jornalista Laís Chaffe (veja artigo - http://www.cinema.com.br/site/opiniao-interna1.php?id=162).
Assessora de imprensa da Paulo Amorim durante cerca de dez anos, Laís
foi solenemente afastada quando começou a fazer oposição
ao projeto Mônica-Mariângela. Nesta mesma época, Pereira
foi nomeado até mesmo para conselheiro do CEC.
Mas as negociações que até então ocorriam nos bastidores
e eram sistematicamente negadas pela secretária Mônica Leal vieram
a público. Pressionada pela imprensa e pela Associação
Profissional de Técnicos Cinematográficos (APTC) a confirmar as
mudanças, a Sedac-RS continuou negando qualquer acordo com a empresa
de Mariângela Grando, ao mesmo tempo em que recuava das tratativas. Não
por acaso, pouco tempo depois disso o então diretor da Cinemateca, Joaquim
Pereira, foi exonerado. O acordo estava desfeito. A partir daí começam
os desacertos entre Mariângela Grando e a secretária Mônica
Leal, que deixam de ser aliadas.
Tradicionalismo e folclore
Grande parte da comunidade cultural gaúcha contesta os critérios
(ou a falta deles) para a LIC. O Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG),
entidade privada promotora de vários eventos de grande porte, tem conseguido
capitanear grande parte das verbas públicas do setor da cultura e da
LIC das empresas estatais, fundações e autarquias. Neste ano,
antes mesmo que o Conselho Estadual de Cultura houvesse se manifestado sobre
a aprovação de recursos da LIC para os eventos da Semana Farroupilha,
o governo do Estado decidiu destinar R$ 642 mil da verba publicitária
de três estatais - Banrisul, Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan)
e Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) - para os festejos. A
própria presidente do CEC, Mariângela Grando, declarou em entrevista
à Revista Aplauso (leia aqui - http://www.aplauso.com.br/site/portal/detalhe_notas.asp?campo=1127&secao_id=17):
"O que estamos percebendo é que chegam para nós, maciçamente,
projetos de um segmento apenas - folclore e tradicionalismo. Mas é importante
lembrar que a LIC foi criada para estimular a produção independente
de cultura." Na mesma entrevista, ela afirma que o perfil da maioria dos
projetos enviados ao CEC diz respeito a eventos e festas. E acrescenta: "Projetos
de grande visibilidade para a agenda cultural do Estado têm sido trazidos
para o âmbito da LIC. É o caso da Feira do Livro, da Jornada de
Passo Fundo, do Festival de Cinema de Gramado, da Semana Farroupilha de Porto
Alegre. Mas não pode ser assim. Esses eventos deveriam ter recursos orçamentários."
Novidade?
Pressionada pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) que, desde 2002, apontava
diversas irregularidades na captação de recursos e comprovação
de gastos pelas empresas produtoras, a Sedac-RS promoveu, recentemente, algumas
modificações na Lei de Incentivo à Cultura no Estado. No
entanto, o que se vê é que o essencial não mudou. A LIC
deveria promover a democratização dos recursos entre diversas
atividades culturais, estimulando novas iniciativas e as pequenas produções.
Mas as grandes produtoras e os grupos de interesse mais articulados politicamente
continuam sendo os maiores beneficiados pela Lei. Grandes eventos, patrocinados
pelo Estado brasileiro com recursos das leis de incentivo à cultura,
cobram ingressos com preços exorbitantes e se destinam a uma elite que
pode pagar pelo espetáculo. Nesta semana, a imprensa gaúcha apontou
indícios de que a empresa Opus Promoções, promotora de
grandes eventos no Estado, também estaria envolvida em irregularidades
com a LIC. Entre outras denúncias, a Opus teria comprovado gastos na
produção de seus eventos financiados pela LIC mediante a apresentação
de notas frias.
Anteriormente, o Festival de Cinema de Gramado já tinha se envolvido
em escândalo parecido. Fraudes constatadas na organização
do festival, em 2006, resultaram numa ação do Tribunal de Contas
do Estado (TCE) que trancou as verbas da LIC. Os organizadores buscavam captar
R$ 1,5 milhão por meio da Lei. O Ministério Público Especial
do TCE-RS constatou irregularidades na documentação do projeto
de captação que os organizadores do Festival de Gramado enviaram
ao Conselho Estadual de Cultura, inclusive com falsificação de
assinaturas no orçamento de uma empresa de segurança privada.
O caso gerou, à época, até mesmo a renúncia do empresário
que ocupava o cargo de presidente do Festival havia 15 anos.
Disso tudo, fica a pergunta: há alguma novidade nessas fraudes agora
denunciadas pela imprensa? Será que ninguém sabia que há
muito tempo estavam ocorrendo fraudes em relação à LIC?
Nacional
Em âmbito nacional, especialistas estimam que, nos 17 anos de existência
da Lei Rouanet, mais de 70% dos recursos foram destinados a projetos de um pequeno
grupo de produtores do eixo Rio-São Paulo. Mesmo a FLIP - Festa Internacional
do Livro de Paraty, iniciativa saudada por todos que gostam de literatura, é
um exemplo disso. Recebe grandes patrocínios à custa de renúncia
fiscal, via Lei Rouanet, mas se destina a um público elitizado. Outro
exemplo: o CIE Brasil captou R$ 9,4 milhões com a Lei Rouanet para a
temporada brasileira do Cirque du Soleil, em 2006. Neste mesmo ano, o custo
do ingresso mais barato do espetáculo era de R$ 150,00. Fica muito evidente,
em casos como esses, que certos eventos contemplados pela Rouanet e pela LIC-RS
- pelos seus méritos inquestionáveis e pela sua magnitude -, costumam
receber "aprovação a priori", sem que haja interesse
do poder público e da própria comunidade cultural em analisar
mais detalhadamente os gastos e as prestações de contas dessas
empresas.
Em 1995, a empresa do ator Guilherme Fontes captou R$ 8,641 milhões
para a produção do filme "Chatô, o Rei do Brasil"
por meio da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisual. Neste ano, a Controladoria-Geral
da União (CGU) decidiu que o ator e sua mãe Yolanda Machado Medina
Coelios - produtores do filme - vão ter de devolver os recursos públicos
tomados para a realização do longa-metragem. O processo instaurado
pela Ancine (Agência Nacional de Cinema) apontou irregularidade nas contas
da produção. Conforme valores atualizados até 28 de fevereiro
de 2006, os dois produtores deveriam R$ 36,580 milhões aos cofres públicos.
Detalhe: "Chatô" não foi concluído até
hoje.
Em 2006, pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) e Ministério da Cultura constatou, entre outras coisas, que o
Estado brasileiro gasta menos com produção e promoção
de atividades culturais do que a população com o consumo delas.
Ou seja, fica implícito que estratégias como a da Rouanet e da
LIC-RS ainda não são suficientes para ampliar o acesso da população
às atividades culturais. Os empreendimentos culturais, em geral, têm
preço alto e são para poucos.
Cine Guion X Idosos
O Cine Guion, com várias salas de cinema em Porto Alegre, decididamente
parece não gostar dos idosos. Ao menos é o que se deduz pelos
constrangimentos que impõe àquela clientela que já passou
dos 60 anos de idade e que tem direito legal à meia-entrada nos cinemas.
Freqüentadores do Guion que já estão nesta faixa etária
têm reclamado que, mesmo evidenciando terem 65 anos ou mais, são
constrangidos a mostrarem a carteira de identidade na bilheteria do cinema e
a assinarem um documento em que atestam a idade. Tudo isso sob manifestações
de visível desagrado por parte dos responsáveis pelo Guion, segundo
os relatos dos idosos. É um direito dos proprietários e administradores
das salas do Cine Guion não concordarem com a lei da meia-entrada, mas
isso não lhes dá direito a constranger os idosos que prestigiam
o cinema e que desfrutam de uma vantagem obtida legalmente. Se os administradores
do Guion entendem que as isenções são indevidas, devem
lutar pela reformulação do Estatuto do Idoso, que garante o benefício
às pessoas com mais de 65 anos. Vale lembrar ao pessoal do Guion, no
entanto, aquela máxima: mais cedo ou mais tarde, se tivermos sorte, também
chegaremos à terceira idade.
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