O depressivo-sonhador vai a um destes eventos em que só os amigos mais
chegados, curiosos e furões comparecem: um vernissage. Mal entra e já
um garçom lhe coloca nas mãos uma taça de espumante e oferece-lhe,
em uma bandeja, canapés. O depressivo-sonhador agradece e aceita o espumante.
Com a taça em mãos olha as esculturas expostas. De fato o seu amigo
exibe uma qualidade surpreendente em seu trabalho. Procura-o com os olhos e o
encontra junto a amigos. Aproxima-se, abraça-o e derrama uma série
de cumprimentos superlativos.
Não que ele não os mereça, ao contrário. Conversa
um pouco com o amigo e volta a ziguezaguear entre as esculturas. Observa a fauna
que se faz presente. Algumas pessoas conhecidas, outras não. Algumas
destas, em posições estratégicas na sala, lhe despertam
a atenção. Ele as reencontra, sem qualquer cerimônia, a
cada vernissage ou evento onde bebes e comes são servidos. Como tomam
conhecimento destes acontecimentos sociais, ele desconhece. Anônimos que
se misturam entre o restante dos convidados e, mais que o material exposto,
cuidam, especialmente, do garçom e do que ele traz consigo. Como se fosse
um jogo de cartas marcadas. Num correr de olhos, ele o vê: o político
aquele!
Conversa animadamente em um grupo. Seus gestos e trejeitos são exuberantes,
próprios de quem se trata. O depressivo-sonhador tenta se afastar de
seu entorno inutilmente. O político o vê e corre ao seu encontro
(estamos em vésperas de eleição, sempre é bom lembrar).
Abraça-o com tamanho ímpeto que a taça de espumante quase
se quebra contra seu peito. “Como vai este grande amigo? Há quanto
não nos encontramos?” No mínimo há quatro anos, pensa
o depressivo-sonhador. “O que andas fazendo?” E sem espaço
para responder o político imediatamente completa:”Com certeza trabalhando
pela cultura! Ah, a nossa cultura, um bem inestimável! Sabemos, principalmente
tu, o quanto ela representa para a humanidade. De maneira especial para os jovens!”.
O depressivo-sonhador engole em seco e tenta argumentar, mas o outro não
lhe dá tempo. “E seus pais como estão?”.
O depressivo-sonhador o encara com espanto. Nem imaginava que ele conhecesse
seus pais. Pensa em contar que a mãe falecera há alguns meses,
mas desiste: não tem interesse em continuar uma conversa que o aborrece.
“Sabes quem encontrei outro dia? O Ermenegildo! Falou muito sobre o teu
trabalho com rasgados elogios!” O depressivo-sonhador fica se perguntando:
Quem será esse tal de Ermenegildo? O político não dá
tréguas. “Gosto de falar com pessoas inteligentes!” O depressivo-sonhador
nunca desconfiara disto. “Deves ter percebido como a imprensa se volta
contra nós! De um momento para outro estamos sendo considerados o que
há de pior para a sociedade! Tudo recai sobre nós, temos culpa
de tudo: dos mensalões, dos grampos; das acusações que
nos são feitas por qualquer um! Baboseiras! Trabalhamos com afinco;há
vezes em que não dormimos deliberando! Nossas atividades nos exigem ao
limite! E com os poucos assessores que temos... Não há muito,
porque sugerimos a criação de apenas mais 20 cargos para nossa
assessoria direta foi um terremoto! Mas nós precisamos! Sei que o amigo
entende o nosso drama, mas esta tal de imprensa... Nos acusam de ganharmos em
excesso como se isso fosse pecado! Crápulas! E agora insistem na tal
de ficha-suja! Mas o que é isto? Em que país estamos? Por acaso
querem acabar com a democracia tão arduamente conquistada? Não
imaginas quanta amargura...”
O depressivo-sonhador olha para todos os lados tentando uma forma de escapulir.
Por sorte, o político dá de olhos em outra vítima e atira-se
em sua direção. O depressivo-sonhador permanece um tempo pensando
se tudo o que acontecera nestes últimos minutos fora verdade ou ilusão.
Depois, sem se despedir de ninguém se afasta e reflete: “De que
valeram a luta pela redemocratização, o exílio, as passeatas
pelas diretas já, os discursos inflamados, o exílio? Onde ficaram
os sonhos dos que participaram dos movimentos? Que fim levou a esperança
de dias melhores?” Caminha sorumbático pela avenida sem cuidar
por onde passa ou com quem cruza. “Que país é este? Isto
não pode ser o resultado de tanta luta. Não a resposta aos nossos
ideais! Isto não é o Brasil que sonhamos!” O depressivo-sonhador
apanha um cigarro do maço, acende-o e o traga soltando a fumaça
como se fosse um suspiro. “Pra salvar este país, conclui, só
não elegendo ninguém”.
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