Se Saramago fosse chamado para sugerir um título ao mais novo livro de
Cleci Silveira, talvez cravasse “Ensaio sobre a nostalgia”. E em poucas
palavras captaria bem a sensação deste primeiro romance da já
premiada autora.
Além da porta (Movimento, 2008), narra a história de uma descendente
de alemães, Valquíria, desde o nascimento, passando pela infância
e a ida para a Capital em busca de oportunidades profissionais. Muito ligada
à terra e à família, especialmente à avó,
recorda com saudades dos tempos de infância e lamenta a urbanização
de sua antiga terrinha, por vezes lamenta também estar longe de casa
apesar da paixão pela enfermagem. E essas saudades de Valquíria
simbolizam toda a saudade de uma geração por tempos menos corridos,
com menos carros, dinheiros e urgências circulando.
Franklin Cunha, médico e escritor, na contracapa destaca que a obra
“se passa num tempo e numa estrutura social quase pré-capitalistas,
nos quais os afetos, os laços familiares eram mais importantes do que
a posse e a fruição de objetos e coisas inúteis previamente
obsolescentes”. Fernando Neubarth, também médico e escritor,
na orelha saúda o livro e lembra: “o tempo é o nosso, o
que se viu e o que se vê”. Não por acaso ambos salientam
este aspecto nostálgico, quase melancólico, mas natural e necessário
diante de uma sociedade tão transformada.
“Nas noites de sábado, os imperdíveis bailes da Reitoria.
Dançava-se ao som de Norberto Baldauf e seu conjunto, em épocas
de “amasso” musicado, virgindade e muito romantismo. Buscava-se
o par ideal e, quando se achava, a música era a condutora do espetáculo,
e os pares se deixavam levar, juntinhos, rostos colados. Uma dessas noites,
Valquíria nunca mais esqueceu. Foi quando conheceu Sérgio, Sig,
como o chamavam os amigos. Estava no último ano da Faculdade de Economia.
Dançaram juntos. Ele gostou dela, ela gostou dele, de seu jeito, de sua
voz, de seu cheiro. Gostou como jamais gostara de alguém e tampouco viria
a gostar. Foi assim, tudo muito rápido.”
Não que Cleci, hábil narradora, caia no jogo fácil do
saudosismo, exaltando o passado ou os que estão na terra (em oposição
aos urbanos). De forma alguma: ao longo da narrativa as personagens mostram-se
nada planas e a maldade revela-se onde haja inveja, perfídia, ambição,
seja na cidade ou no campo, seja no passado ou no presente. Mais do que a perda
de sua terra, Valquíria terá de lidar com a perda de seus laços
afetivos, quase todos, e a ruína da casa é apenas um símbolo
da ruína familiar (lembrando um pouco, neste aspecto, o maravilhoso Dois
Irmãos, de Milton Hatoum).
Outro nome de peso que assina orelha do livro, Luiz Antonio de Assis Brasil,
prefere saudar a autora, afirmando que “estamos perante uma escritora
que merece colher todos os frutos de seu trabalho”. Palavras de mestre,
pois Cleci iniciou sua vida literária em 1994 na Oficina de Criação
Literária do Assis, e de lá para cá amadureceu o texto
e solidificou uma carreira respeitável: duas coletâneas de contos,
uma de crônicas e indicação como finalista ao Prêmio
Jabuti. Este é, pois, seu primeiro romance, um dado que de certa forma
interfere na própria estética do livro.
Ocorre que assim como o próprio Assis Brasil desde O pintor de retratos
e muitos contistas que publicam romances, como Cíntia Moscovich e Jacira
Fagundes, só para citar duas mulheres, Cleci produz novela com feitio
de conto, utilizando uma linguagem extremamente concisa e, acima de tudo, valendo-se
sobremaneira do subtexto. Entre sobrar algo desnecessário ou faltar algo
importante, a opção é pela concisão, pelo subtexto,
o que de um lado exige mais do leitor e, de outro, a ele abre um universo enorme
de possibilidades.
E é além das palavras, além do tempo, além da porta
que está o real significado das palavras, do tempo e das portas.
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