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Literatura

As conquistas da Semana de Arte Moderna já estão esgotadas?
Ricardo Silvestrin

Uma vez fui convidado pela TVE aqui em Porto Alegre para entrevistar o Décio Pignatari. Relatei a ele uma das cartas do poeta Paulo Leminski a Régis Bonvincino. Nessa carta, Leminski fala de um episódio que denominou como uma transmissão da lâmpada. A expressão remete a quando um mestre diz algo para os discípulos que funciona como um insight, cai a ficha, ao mesmo tempo em que se cria um novo desafio. Aconteceu quando Paulo e outros jovens poetas estavam reunidos com Pignatari, que lhes disse algo como “o concretismo tem que acabar; e só quem poderia fazer isso eram eles”. Leminski ficou um tempo pensando em como poderia fazer tal empreitada e concluiu algumas coisas.

A primeira é que ele era mais concretista que os concretos, pois já nasceu concretista, começou a escrever já sendo, enquanto os “patriarcas” do movimento tiveram que chegar até essa forma. A segunda é que ele era várias outras coisas que os concretistas não eram, sobretudo, no que toca aos trotskismo e à contracultura. Então, quando Leminski deixou que essa duas linhas políticas e comportamentais de sua geração entrassem na sua poesia, fez um poema que superava, que não era mais poesia concreta, embora nascida nela, como consciência de linguagem e invenção com a palavra. Perguntei na entrevista ao Décio no que ele pensava quando disse aquilo para os jovens poetas. Ele queria dizer que estavam, a academia, as universidades, na época, tentando catalogar, “matar”, encontrar as leis, as características da poesia concreta e transformá-la num ismo, o concretismo. Na sua visão, nem ele nem os outros colegas de movimento queriam isso. Nunca fizeram um concretismo e sim a poesia concreta. E acrescentou: e o que é a poesia concreta? É uma pergunta: o que é a poesia?

E é essa pergunta que devemos fazer a cada vez que escrevermos um poema. E a cada vez devemos dar uma resposta diferente. Há um vício escolar de querer encontrar nos autores e nas escolas literárias leis. Mas se olharmos os grandes poetas da primeira fase do modernismo brasileiro, todos são muito diferentes. A poesia de Oswald não se parece com a do Mário de Andrade, que por sua vez não se parece com a de Manuel Bandeira e, seguindo, não se parece com a de Drummond, que não se parece com a de Vinícius, que é diferente da de Cecília Meireles, que difere da de Quintana. Creio que sejam esses os principais disso que se convencionou chamar de modernismo. O que os une? A liberdade de criar a sua própria poesia.

Não é outro o sentido do verso final da Poética do Manuel Bandeira: “não quero mais saber do lirismo que não é libertação”. João Cabral escreve num dos ensaios do seu livro Prosa sobre o momento especial que viveram esses poetas, principalmente os da década de trinta, pois puderam fazer dos seus critérios pessoais a sua estética. Mas isso não é apenas um privilégio de um momento. É a condição para que uma poesia se estabeleça entre tantas. Camões escreveu sonetos, uma forma fixa muito praticada também na sua época. Mas o soneto dele tem marcas próprias, que ultrapassam a forma e mesmo transformam a forma. A inteligência, a visão de mundo, o engenho e a arte que eram só dele fazem de algo aparentemente igual, diferente. Se pensarmos que a maior conquista da Semana de 22 é a liberdade de criar, não está nem nunca estará esgotada. Outro ponto: os poetas modernistas morreram ontem. Até poucos anos estavam entre nós, produzindo, lançando livros contemporâneos. Não se pode pensar em modernismo como algo que começa em vinte e termina na década de cinqüenta.

Pouco se tem falado sobre a poesia de Ferreira Gullar. Estou relendo tudo o que ele escreveu. O Poema Sujo é algo extremamente pessoal e intransferível. Longo, sensível, político, filosófico, apaixonado, memorialista, criativo, com vários ritmos, imagens. Não tem muito parentesco com o que se fez antes na nossa poesia. E depois, nos livros mais recentes, pérolas desse poema-pensameto, de verso magro que o Gullar realiza como só ele mesmo. A virada de Chacal, relançada numa linda edição da CosacNaify, no Belvedere. Ali, tudo muda. Mas mudou, porque Chacal teve a coragem de ser ele mesmo. Isso é 22? Não. Isso é a arte. Quem não encarar a si mesmo não faz nada que acrescente. E encarar a si mesmo é botar na balança o que aprendeu com quem veio antes, mas colocar na roda também o que aprendeu consigo mesmo.

Podemos ver no século vinte e começo deste século dois movimentos que chamo de desliteralização e de literalização do poema. A desliteralização é a aproximação com a fala, distanciando da linguagem tida como literária: termos coloquiais, gírias, ritmos mais centrados no espaço, na quebra, do que na métrica, temas cotidianos, brasilidade, urbanidade, ruptura com cânones, invenção. A literalização é o contrário: uso de termos mais raros, diálogo com formas fixas, clássicas, temas elevados, filosóficos, sombrios, reverência à tradição. Esses dois movimentos existem e existiram simultaneamente em todas as décadas, inclusive como fases de um mesmo autor. Em determinados períodos, um se sobrepõe ao outro, aparentemente ganha a briga, mas se esgota na luta, enquanto o outro se recupera. Isso porque a arte tem que seguir a estranhar. O que era novo fica conhecido, vira truque, então um novo novo, que pode ser até o velho, já se ergue.

Na seqüência, os mesmos elementos reordenados, dispostos de outra forma, renascem. E tem as gerações que se sucedem. Cada uma tenta encontrar uma nova linguagem para a sua nova visão de mundo. Não é de grande utilidade querer dar por encerrado nada em arte. Querer formar consensos, grupelhos, leis, só serve para a auto-afirmação temporária, mas a obra, meus amigos, como disse o Gullar, é que vai sobreviver ou não a nós todos. Sobreviver à politicagem, aos amigos dos editores, aos jornalistas e suas turmas, aos cupinchas, aos equivocados e aos lúcidos.


13/11/2008

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  Ricardo Silvestrin

Ricardo Silvestrin nasceu em Porto Alegre, 1963. Formado em Letras pela UFRGS, é poeta, com diversos livros publicados, e músico integrante dos poETs.

ricardo.silvestrin@globo.com
www.ricardosilvestrin.com.br


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