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Cultura

Relativismo cultural preserva a barbárie
Carlos Scomazzon

Cena1

Uma mulher somali segura a menina pelas costas, enquanto ela se debate e grita desesperadamente. Outras duas mulheres mantêm suas pernas abertas. A própria mãe da menina usa um caco de garrafa para a remoção do clitóris sem qualquer assepsia ou anestesia. Em seguida, os grandes lábios são aproximados e costurados, de forma a vedar a ferida, deixando apenas um minúsculo orifício, no qual se coloca um pedaço de bambu para impedir o fechamento total. As pernas da criança são amarradas, para evitar movimentos que impeçam a cicatrização. A seguir, ela é colocada em uma esteira até urinar, prova de que o orifício não está totalmente bloqueado.

Cena2

Emma Gough, jovem britânica de 22 anos, dá à luz um casal de gêmeos em um hospital na Inglaterra. Quando nascem, a mãe ainda tem tempo de segurar os dois, mas fica inconsciente pouco depois, devido a uma hemorragia. Emma havia assinado uma declaração antes do parto dizendo que não autorizava uma transfusão de sangue em caso de emergência, sob a justificativa de que seria contra as regras de sua religião. Os médicos ainda suplicam à família, marido incluído, mas eles preferem deixar Emma morrer. As testemunhas de Jeová, religião da qual Emma é adepta, consideram a transfusão de sangue um pecado, um ato proibido pela Bíblia.

Cena3

No Brasil, um idoso está internado numa UTI (Unidade de Terapia Intensiva) hospitalar. Com quadro clínico de hemorragia digestiva, corre risco de morte iminente. Nestas condições clínicas, torna-se imprescindível a transfusão de sangue. Os médicos, no entanto, não obtêm o consentimento dos familiares, adeptos de uma religião que considera o sangue como sendo de natureza sagrada. Recorrem, então, à Justiça para tentar realizar a transfusão e, assim, salvar a vida do idoso. Baseado no artigo 5º da Constituição Federal, que estabelece como inviolável a liberdade de consciência e de crença, o juiz nega a autorização.

Cena4

Logo que nasce, o garoto é enterrado vivo pela mãe. Segue-se, assim, um ritual determinado pelo código cultural da tribo dos kamaiurás (Mato Grosso): o menino fora gerado por mãe solteira. Para assegurar que seu destino não seja mudado, os avós ainda pisoteiam a cova. Ninguém ouve sequer um choro. Duas horas depois da cerimônia, num gesto que desafia toda a aldeia, a tia empenha-se em desenterrar o bebê. Os olhos e narinas da criança sangram muito, e o primeiro choro só acontece oito horas mais tarde. Os índios mais velhos acreditam que o indiozinho só escapou da morte porque, naquele dia, a terra da cova estava misturada a muitas folhas e gravetos, o que pode ter formado uma pequena bolha de ar. "Antes de desenterrá-lo, eu já tinha ouvido os gritos de três crianças debaixo da terra", relata a tia. "Tentei desenterrar todos eles, mas meu sobrinho foi o único que não gritou e que escapou com vida."

Cena5

Uma índia se refugia com a filha, de 9 anos, em um abrigo. A menina faz tratamento por ter nascido com distrofia muscular progressiva, doença que a impossibilita de andar. A tribo descobriu o problema quando a menina deveria estar dando os primeiros passos. A mãe fugiu antes de ser obrigada a aplicar a tradição. No hospital, os médicos dizem que não há nada a fazer. A indiazinha deverá passar a vida numa cadeira de rodas. "É a pessoa que mais amo no mundo, mais que meus outros filhos", diz a mãe.

Cena6

Souad nasceu numa pequena aldeia da Cisjordânia. Tinha 17 anos e ainda não era casada, o que a tornava alvo de troça. Apaixonou-se por um rapaz que a tinha pedido em casamento, mas a abandonou quando soube que Souad estava grávida. Por intermédio de uma tia, os pais descobriram e logo prepararam a sentença. No dia seguinte, o cunhado de Souad regou-a com gasolina e ateou-lhe fogo. A jovem conseguiu sobreviver e acabou por ser salva no hospital, já depois de ter dado à luz, por uma ativista de uma organização suíça. A ativista conseguiu convencer os pais de Souad que seria melhor que a filha morresse noutro país. O filho de Souad havia sido adotado. Vítima de um “crime de honra”, hoje ela recusa-se a dizer o nome verdadeiro ou a mostrar a cara, pois receia ser encontrada pela família.

Cena7

O toureiro recebe o touro e define a estratégia. Com longas lanças, homens em seus cavalos atacam o pescoço do touro em um único lugar. Depois disso, são enfiados três pares de “bandeirinhas” nas costas do touro. O matador, então, recebe o touro sozinho na arena, na parte final da luta. Usando capa vermelha, ele passa pelo touro tantas vezes quanto possível, tocando e roçando seu corpo no do animal. Após vários passos e manobras, se aproxima. O objetivo: atingir o touro com um único e certeiro golpe da espada em suas costas, em um ponto específico e mortal. A luta, então, é julgada pelo público, que pode aplaudir e assobiar ou silenciar-se. Dependendo do grau de aprovação do público, avaliada pelo presidente da tourada, será dado ao toureiro uma ou duas orelhas do animal. O presidente mostra dois lenços brancos, e o toureiro recebe duas orelhas na mesma tarde, sendo carregado nos ombros para fora da arena até o portão principal.

Condescendência

Somos condescendentes e coniventes com culturas e costumes de povos que exaltam, por exemplo, a submissão das mulheres e o casamento forçado, que praticam o estupro e a violência física contra elas ou que não têm respeito pela vida animal. Ao mesmo tempo, ainda vivemos em uma sociedade machista, homofóbica e que tem aversão a pessoas transexuais ou travestis. Neste mesmo contexto, a cerimônia da ablação do clitóris em mulheres - para frear o desejo sexual feminino e garantir a honra e a fidelidade da mulher a seu esposo - é vista como uma tradição cultural de alguns povos. Calcula-se que, a cada dia, seis mil mulheres sejam mutiladas em todo o mundo. Em pleno século XXI, devemos respeitar essa prática em nome da diversidade cultural e da tolerância?

Infanticídio

O infanticídio está presente em diversas tribos indígenas brasileiras. Crianças são mortas em nome dos costumes. Pesquisadores já detectaram a prática do infanticídio em pelo menos 13 etnias. Só os ianomâmis, em 2004, mataram 98 crianças. Os kamaiurás matam entre 20 e 30 por ano. Os motivos para o infanticídio, assim como os métodos usados para matar, variam de tribo para tribo: filhos de mães solteiras, recém-nascidos portadores de deficiências físicas ou mentais e gêmeos estão entre os sacrificados. Os rituais de execução consistem em enterrar vivos, afogar ou enforcar os bebês. Os próprios índios começam a se rebelar contra essa tradição. Antropólogos, representantes de povos indígenas e a Funai, organismo estatal com a missão de cuidar dos índios, se socorrem do relativismo cultural. Defendem o direito de as tribos decidirem sobre infanticídio e argumentam, por exemplo, que os indígenas não podem se submeter aos nossos padrões morais e culturais.

Honra

Com origem em tradições tribais e patriarcais e aplicados pelos homens da família, os “crimes de honra” são atos de violência praticados contra as mulheres quando estas cometem adultério, querem o divórcio, são violadas ou não se submetem a um casamento arranjado. A organização Human Rights Watch apresentou um documento à ONU, em 2001, informando que “os crimes de honra não são específicos de nenhuma religião, nem estão limitados a qualquer região do mundo". O respeito às culturas locais serve de justificativa para a ONU não intervir em países que desrespeitam direitos humanos. Por esse mesmo critério, por exemplo, não poderíamos julgar os homens afegãos pela violência que impõem às mulheres nem condenar a circuncisão feminina em alguns lugares da África, pois esses tratamentos seriam “culturais”.

O relativismo cultural é a desculpa. E o Ocidente finge que não participa da barbárie.

Multiculturalismo

A somali Ayaan Hirsi Ali esteve recentemente no Brasil e foi uma das estrelas do seminário Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre. Ayaan também gravou entrevista para o programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo. Ela é negra, tem 39 anos, e nasceu em Mogadíscio, na Somália. Aos 5 anos, Ayaan sofreu infibulação - a ablação (remoção) do clitóris e dos pequenos lábios vaginais, seguida de costura dos grandes lábios - numa cerimônia organizada pela avó. Quando completou 6 anos, sua família deixou a Somália e passou a morar na Arábia Saudita, Etiópia e Quênia. Em 1992 ela chega à Holanda, país onde se elegeu deputada em 2003. Em 2004, fez o filme "Submissão" com o cineasta Theo Van Gogh. O filme trata da opressão das mulheres no islã. A cena em que aparece uma mulher seminua com o corpo estampado com trechos do Alcorão foi a sentença de morte para Theo, assassinado na Holanda por um islâmico radical. Em seu corpo, havia uma carta avisando que a próxima vítima seria Ayaan. Ela foi para os Estados Unidos e atualmente reside em Washington. Em todo lugar que ela passa, os seguranças a acompanham.

Ayaan é crítica ao islamismo e ao multiculturalismo e considera uma distorção da liberdade permitir a opressão de mulheres em nome da diversidade cultural ou religiosa. Para ela, o multiculturalismo aprisiona as minorias. "Se o respeito pela tradição e ou religião conflita com os direitos humanos, o indivíduo deve sempre vir antes”, diz Ayaan, contrariando a tese politicamente correta do respeito à identidade e à tradição dos imigrantes. “A doutrina do multiculturalismo é uma ilusão cruel.”


03/12/2008

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  Carlos Scomazzon

Nascido em 1962, Carlos Scomazzon é natural de Porto Alegre (RS), onde reside. Atualmente, é jornalista da Câmara Municipal de Porto Alegre. Também atua voluntariamente como jornalista na Ecoagência de Notícias Ambientais, mantida pelo Núcleo de Ecojornalistas do RS (NEJ-RS), do qual participa desde 1992. Desde 2002, administra a Rede Brasileira de Comunicação Pública, uma lista de discussão focada na comunicação pública e integrada por profissionais e estudantes de diversas áreas da comunicação. É casado com a jornalista e escritora Laís Chaffe e pai dos catarinenses João Victor e João Vinícius.

comunicante.blog@comunicante.jor.br
www.comunicante.jor.br/


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