Cena1
Uma mulher somali segura a menina pelas costas, enquanto ela se debate e grita
desesperadamente. Outras duas mulheres mantêm suas pernas abertas. A própria
mãe da menina usa um caco de garrafa para a remoção do
clitóris sem qualquer assepsia ou anestesia. Em seguida, os grandes lábios
são aproximados e costurados, de forma a vedar a ferida, deixando apenas
um minúsculo orifício, no qual se coloca um pedaço de bambu
para impedir o fechamento total. As pernas da criança são amarradas,
para evitar movimentos que impeçam a cicatrização. A seguir,
ela é colocada em uma esteira até urinar, prova de que o orifício
não está totalmente bloqueado.
Cena2
Emma Gough, jovem britânica de 22 anos, dá à luz um casal
de gêmeos em um hospital na Inglaterra. Quando nascem, a mãe ainda
tem tempo de segurar os dois, mas fica inconsciente pouco depois, devido a uma
hemorragia. Emma havia assinado uma declaração antes do parto
dizendo que não autorizava uma transfusão de sangue em caso de
emergência, sob a justificativa de que seria contra as regras de sua religião.
Os médicos ainda suplicam à família, marido incluído,
mas eles preferem deixar Emma morrer. As testemunhas de Jeová, religião
da qual Emma é adepta, consideram a transfusão de sangue um pecado,
um ato proibido pela Bíblia.
Cena3
No Brasil, um idoso está internado numa UTI (Unidade de Terapia Intensiva)
hospitalar. Com quadro clínico de hemorragia digestiva, corre risco de
morte iminente. Nestas condições clínicas, torna-se imprescindível
a transfusão de sangue. Os médicos, no entanto, não obtêm
o consentimento dos familiares, adeptos de uma religião que considera
o sangue como sendo de natureza sagrada. Recorrem, então, à Justiça
para tentar realizar a transfusão e, assim, salvar a vida do idoso. Baseado
no artigo 5º da Constituição Federal, que estabelece como
inviolável a liberdade de consciência e de crença, o juiz
nega a autorização.
Cena4
Logo que nasce, o garoto é enterrado vivo pela mãe. Segue-se,
assim, um ritual determinado pelo código cultural da tribo dos kamaiurás
(Mato Grosso): o menino fora gerado por mãe solteira. Para assegurar
que seu destino não seja mudado, os avós ainda pisoteiam a cova.
Ninguém ouve sequer um choro. Duas horas depois da cerimônia, num
gesto que desafia toda a aldeia, a tia empenha-se em desenterrar o bebê.
Os olhos e narinas da criança sangram muito, e o primeiro choro só
acontece oito horas mais tarde. Os índios mais velhos acreditam que o
indiozinho só escapou da morte porque, naquele dia, a terra da cova estava
misturada a muitas folhas e gravetos, o que pode ter formado uma pequena bolha
de ar. "Antes de desenterrá-lo, eu já tinha ouvido os gritos
de três crianças debaixo da terra", relata a tia. "Tentei
desenterrar todos eles, mas meu sobrinho foi o único que não gritou
e que escapou com vida."
Cena5
Uma índia se refugia com a filha, de 9 anos, em um abrigo. A menina
faz tratamento por ter nascido com distrofia muscular progressiva, doença
que a impossibilita de andar. A tribo descobriu o problema quando a menina deveria
estar dando os primeiros passos. A mãe fugiu antes de ser obrigada a
aplicar a tradição. No hospital, os médicos dizem que não
há nada a fazer. A indiazinha deverá passar a vida numa cadeira
de rodas. "É a pessoa que mais amo no mundo, mais que meus outros
filhos", diz a mãe.
Cena6
Souad nasceu numa pequena aldeia da Cisjordânia. Tinha 17 anos e ainda
não era casada, o que a tornava alvo de troça. Apaixonou-se por
um rapaz que a tinha pedido em casamento, mas a abandonou quando soube que Souad
estava grávida. Por intermédio de uma tia, os pais descobriram
e logo prepararam a sentença. No dia seguinte, o cunhado de Souad regou-a
com gasolina e ateou-lhe fogo. A jovem conseguiu sobreviver e acabou por ser
salva no hospital, já depois de ter dado à luz, por uma ativista
de uma organização suíça. A ativista conseguiu convencer
os pais de Souad que seria melhor que a filha morresse noutro país. O
filho de Souad havia sido adotado. Vítima de um “crime de honra”,
hoje ela recusa-se a dizer o nome verdadeiro ou a mostrar a cara, pois receia
ser encontrada pela família.
Cena7
O toureiro recebe o touro e define a estratégia. Com longas lanças,
homens em seus cavalos atacam o pescoço do touro em um único lugar.
Depois disso, são enfiados três pares de “bandeirinhas”
nas costas do touro. O matador, então, recebe o touro sozinho na arena,
na parte final da luta. Usando capa vermelha, ele passa pelo touro tantas vezes
quanto possível, tocando e roçando seu corpo no do animal. Após
vários passos e manobras, se aproxima. O objetivo: atingir o touro com
um único e certeiro golpe da espada em suas costas, em um ponto específico
e mortal. A luta, então, é julgada pelo público, que pode
aplaudir e assobiar ou silenciar-se. Dependendo do grau de aprovação
do público, avaliada pelo presidente da tourada, será dado ao
toureiro uma ou duas orelhas do animal. O presidente mostra dois lenços
brancos, e o toureiro recebe duas orelhas na mesma tarde, sendo carregado nos
ombros para fora da arena até o portão principal.
Condescendência
Somos condescendentes e coniventes com culturas e costumes de povos que exaltam,
por exemplo, a submissão das mulheres e o casamento forçado, que
praticam o estupro e a violência física contra elas ou que não
têm respeito pela vida animal. Ao mesmo tempo, ainda vivemos em uma sociedade
machista, homofóbica e que tem aversão a pessoas transexuais ou
travestis. Neste mesmo contexto, a cerimônia da ablação
do clitóris em mulheres - para frear o desejo sexual feminino e garantir
a honra e a fidelidade da mulher a seu esposo - é vista como uma tradição
cultural de alguns povos. Calcula-se que, a cada dia, seis mil mulheres sejam
mutiladas em todo o mundo. Em pleno século XXI, devemos respeitar essa
prática em nome da diversidade cultural e da tolerância?
Infanticídio
O infanticídio está presente em diversas tribos indígenas
brasileiras. Crianças são mortas em nome dos costumes. Pesquisadores
já detectaram a prática do infanticídio em pelo menos 13
etnias. Só os ianomâmis, em 2004, mataram 98 crianças. Os
kamaiurás matam entre 20 e 30 por ano. Os motivos para o infanticídio,
assim como os métodos usados para matar, variam de tribo para tribo:
filhos de mães solteiras, recém-nascidos portadores de deficiências
físicas ou mentais e gêmeos estão entre os sacrificados.
Os rituais de execução consistem em enterrar vivos, afogar ou
enforcar os bebês. Os próprios índios começam a se
rebelar contra essa tradição. Antropólogos, representantes
de povos indígenas e a Funai, organismo estatal com a missão de
cuidar dos índios, se socorrem do relativismo cultural. Defendem o direito
de as tribos decidirem sobre infanticídio e argumentam, por exemplo,
que os indígenas não podem se submeter aos nossos padrões
morais e culturais.
Honra
Com origem em tradições tribais e patriarcais e aplicados pelos
homens da família, os “crimes de honra” são atos de
violência praticados contra as mulheres quando estas cometem adultério,
querem o divórcio, são violadas ou não se submetem a um
casamento arranjado. A organização Human Rights Watch apresentou
um documento à ONU, em 2001, informando que “os crimes de honra
não são específicos de nenhuma religião, nem estão
limitados a qualquer região do mundo". O respeito às culturas
locais serve de justificativa para a ONU não intervir em países
que desrespeitam direitos humanos. Por esse mesmo critério, por exemplo,
não poderíamos julgar os homens afegãos pela violência
que impõem às mulheres nem condenar a circuncisão feminina
em alguns lugares da África, pois esses tratamentos seriam “culturais”.
O relativismo cultural é a desculpa. E o Ocidente finge que não
participa da barbárie.
Multiculturalismo
A somali Ayaan Hirsi Ali esteve recentemente no Brasil e foi uma das estrelas
do seminário Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre. Ayaan também
gravou entrevista para o programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo.
Ela é negra, tem 39 anos, e nasceu em Mogadíscio, na Somália.
Aos 5 anos, Ayaan sofreu infibulação - a ablação
(remoção) do clitóris e dos pequenos lábios vaginais,
seguida de costura dos grandes lábios - numa cerimônia organizada
pela avó. Quando completou 6 anos, sua família deixou a Somália
e passou a morar na Arábia Saudita, Etiópia e Quênia. Em
1992 ela chega à Holanda, país onde se elegeu deputada em 2003.
Em 2004, fez o filme "Submissão" com o cineasta Theo Van Gogh.
O filme trata da opressão das mulheres no islã. A cena em que
aparece uma mulher seminua com o corpo estampado com trechos do Alcorão
foi a sentença de morte para Theo, assassinado na Holanda por um islâmico
radical. Em seu corpo, havia uma carta avisando que a próxima vítima
seria Ayaan. Ela foi para os Estados Unidos e atualmente reside em Washington.
Em todo lugar que ela passa, os seguranças a acompanham.
Ayaan é crítica ao islamismo e ao multiculturalismo e considera
uma distorção da liberdade permitir a opressão de mulheres
em nome da diversidade cultural ou religiosa. Para ela, o multiculturalismo
aprisiona as minorias. "Se o respeito pela tradição e ou
religião conflita com os direitos humanos, o indivíduo deve sempre
vir antes”, diz Ayaan, contrariando a tese politicamente correta do respeito
à identidade e à tradição dos imigrantes. “A
doutrina do multiculturalismo é uma ilusão cruel.”
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