Final de ano, já bem longe das comemorações da Revolução
Farroupilha, os artistas que vivem do tradicionalismo encontram espaço
em Porto Alegre, quase que, exclusivamente, em Centros de Tradições
Gaúchas. Em um giro pela cidade, em pleno final de ano, é possível
encontrar pessoas, que por amor à arte gaúcha ou por solidariedade,
levam nossa cultura aos mais diversos lugares. Passando por CTGs, piquetes,
clubes e bares pode-se ter uma noção de como está o cenário
para os artistas mais gaúchos da cidade. E por que não dizer,
mais amigos e solidários?
A `balonê` gaudéria
Os grupos que animam bailes continuam aparecendo e desaparecendo com os mais
diversos nomes, nos mais diversos lugares da cidade. Mas bailes com grupos como
Os Monarcas acabam atraindo centenas de pessoas e se transformam em eventos
esperados pelos tradicionalistas. Sucessos de grupos dos anos 80 continuam agradando
às novas gerações, que vão com famílias em
peso aos CTGs. O costume continua vivo e, arrisco dizer que, como com Os Monarcas,
no CTG Lanceiros da Zona Sul, a cena se repetiria em qualquer CTG do Estado.
Dos 8 meses aos 80 anos (ou mais), ir a bailes é programa para a família
inteira. Cantar as músicas junto com os grupos, levantar para dançar
com determinados `hits` do passado, não é privilégio apenas
de quem vai às balonês (festas que revivem os grandes sucessos
pop/rock da década de 80). No Lanceiros, um grupo de amigos, que faz
curso de dança gaúcha no Clube Farrapos, aproveitava o baile para
mostrar o que aprendeu. A veterinária Marina Krieger sempre teve vontade
de aprender dança gaúcha, mas a vergonha e a falta de companhia
acabaram adiando as aulas. Incentivada por amigos acabou buscando aulas de dança
e gostou do que encontrou. “É um ambiente mais familiar, tu vê
gente de todas as idades convivendo em harmonia”, revela Marina, em uma
das pausas entre um chote e um vanerão.
Foto: Isabel Bonorino
Marina “limpando o salão” com a pilcha nova.
A tradição das duplas
Durante esta reportagem, descobri que uma das músicas que fez Marina
sair correndo no meio da entrevista para dançar e que fez em outros bailes
o público levantar a poeira do salão era uma consagrada por César
Oliveira e Rogério Melo. Pouco antes de seu último show em 2008,
em Porto Alegre, no Clube Farrapos, a dupla da fronteira, contou um pouco de
sua trajetória iniciada oficialmente em 2002 com o cd “Das coisas
simples da gente”. César foi criado ouvindo música de raiz
e, em um desafio com amigos, começou a tocar violão, sendo sua
participação em CTGs e festivais nativistas um caminho natural.
A música começou a ser levada mais a sério e César
fez aulas de canto lírico, se aperfeiçoando na Europa. Seu registro
vocal varia de baixo a tenor e sua técnica pode ser facilmente observada
em sua voz clara e potente.
Rogério Melo começou a desenvolver seu trabalho na música
por influência do amigo e professor César Oliveira e, assim como
ele, também tem a voz talhada para o canto. Duplas não são
novidades na música brasileira, muito menos na gaúcha e, após
três anos de trabalho em conjunto, nascia o projeto do dueto fronteiriço.
“Se analisar a origem dos principais grupos, a maioria dos que hoje ainda
estão aí, foi em duplas”, lembra César. O trabalho
da dupla é feito em cima de um projeto que começou em 2002, que
tem por objetivo resgatar ritmos, temas e costumes da música campeira
do RS, cantando o respeito pela chamada “Pátria Gaúcha”.
A rotina começa no escritório, com a parte administrativa, e segue
durante o fim de semana com viagens para o interior onde fazem shows e bailes.
Os músicos estudam o folclore internacional, mas sem deixar de lado a
música pampeana. Cada cd leva cerca de dois anos para ser produzido,
ou seja, a dupla de amigos já está trabalhando em cima do projeto
para 2010.
Foto César: Isabel Bonorino
César Oliveira: “Já fomos reconhecidos pela ONU como o maior
folclore em atividade”.
De cola atada, pero no mucho
Um dos grandes sucessos da dupla aconteceu com a música “Pra
bailar de cola atada”, que já tinha sido gravada para festival,
mas acabou esquecida. A composição de Danúbio Viera e Juliano
Gomes virou sucesso na voz de César Oliveira e Rogério Melo, em
2002. “É uma música bonita que fala do nosso cotidiano,
do nosso dia-a-dia”, conta Rogério ao tentar explicar por que a
música agrada tanto ao público. Machismos à parte, buscando
entender a expressão, descobre-se que o termo `bailar de cola atada`,
diferente do entendido pela maioria das pessoas, pode ser considerado pouco
familiar, mas isso já é outra história (procure no Google
e tire suas conclusões).
E mais uma vez, durante o show no Farrapos, aconteceu o esperado: dezenas
de pessoas pararam para assistir à dupla, mas bastou César cantar
o primeiro verso da música para o público começar a dançar.
Amizade galponeira
Entre os presentes, o empresário Airton Jr., mais conhecido como McGiver,
juntamente com amigos, está sempre que pode “na cola” da
dupla. Ele filma e fotografa as apresentações é já
é conhecido pelos ídolos, que inclusive já o saúdam
pelo apelido. Por influência das músicas de César e Rogério,
McGiver decidiu usar pilcha todos os dias do ano. “Tinha vontade de assumir
o lado gaudério e desde maio deste ano comecei a andar pilchado”,
revela o rapaz, orgulhoso da própria façanha. Assim como outros
fãs, ele e os amigos só ficaram para o show da dupla. Segundo
eles, é comum as pessoas não ficarem para a próxima atração.
Na seqüência, o grupo Bochincho, que faz o estilo tchê music,
animaria o resto da noite. Uma das primeiras músicas falava algo tipo
`Canalha eu sou`. Sem letras com vocabulário gaudério, sem pilcha,
vestindo roupas normais e prejudicados pela própria falta de técnica
vocal e/ou pelo equipamento de som, o grupo fez boa parte do público
ir embora, confirmando a informação dada pelo público.
Inconformado, Dídimo Neto, amigo de McGiver, reclama que o “maxixe”
dos grupos que aderiram ao tchê music expõe demais a mulher, tanto
quanto o funk. E McGiver complementa dizendo que a tal dança dos novos
grupos tem muita “esfregação”. “Não é
coisa de família”, resume.
Madrugada com jeito da estância
Em outro canto da cidade, no Estância de São Pedro, o pequeno
espaço livre de cerca de 8 m2 era ocupado por alguns casais dançando
chamamé. O local com temática gaúcha, inaugurado há
11 anos, recuperou o público do extinto Pulperia, que fechou portas em
1994. Considerado ponto de encontro para os tradicionalistas, o bar reúne
freqüentadores de CTGs e universitários que vem do interior e tem
saudade das noites na estância. Renata Bongiorni comanda o bar idealizado
pelo pai, Ulisses Ferreira, que sempre gostou da noite e viu que havia carência
de um bar tipicamente gaúcho. Junto com Marcio Antonov, organizam shows
com músicos de renome como Luiz Marenco e Dante Ledesma, além
de terem diariamente músicos da casa. Nesse meio, é possível
reconhecer alguns rostos que já encontrei em piquetes e bailes pela cidade.
Entre eles, um professor de dança que estava prestes a formar sua primeira
turma de adolescentes em um projeto social do Sport Club Internacional e fui
conferir.
Solidariedade via tradição
Há duas semanas do Natal, o funcionário público Antônio
Dalle Molle perdia a festa da escola dos filhos para fazer o ensaio geral de
sua turma no projeto INTERAGIR, mas garante que valeu a pena. Ele conta que
sempre teve vontade de fazer algum trabalho social, principalmente depois de
trabalhar na FASE (antiga FEBEM) e na Promotoria Criminal da Restinga, onde,
conforme ele, a situação da dependência química é
alarmante. “Filhos matando pais, mães acorrentando filhos, guerra
de tráfico.. (...) Lá na Restinga é que surgiu a idéia
de ensinar dança gauchesca para crianças e adolescentes”,
conta Dalle Molle.
Ao procurar na internet ingressos para um jogo do Internacional, Dalle Molle
viu um anúncio solicitando voluntários para participar do projeto
organizado por Constance Piffero. Ele apresentou seu objetivo de trabalhar com
adolescentes em situação de risco social e a idéia foi
aprovada pelo Inter. As aulas de dança gaúcha iniciaram em agosto
de 2008 e eram dadas aos sábados, na rua, no Parque Gigante, em chão
batido e com um aparelho de som que Dalle Molle levava de casa.
Chuva fresca no deserto
Depois de um tempo, o grupo contou com a estrutura do DTG Lenço Colorado,
do Inter. A receptividade dos jovens e o auxílio da coordenadora pedagógica
do projeto, Lorena Boelter, e de outros voluntários foi essencial para
o sucesso do trabalho. O projeto formou 20 jovens na oficina de dança
de Dalle Molle, em dezembro. Na hora da formatura era visível a alegria
e emoção de coordenadores, jovens e familiares. “Espero
ter alcançado o espírito de cada um fazendo com que eles confiem
mais em si mesmos, aprendendo a lidar com situações de tensão
e estresse, e principalmente, que o mais importante é ser feliz”,
afirma o professor. Para Lorena valorizar a cultura é importante e o
Inter deve dar continuidade ao projeto em 2009, inclusive com a integração
dos jovens ao grupo artístico do DTG do clube.
O exemplo desses profissionais, artistas, voluntários, amadores ou não,
mostra que além da cultura e da arte, além do 20 de setembro,
o tradicionalismo oferece ambientes saudáveis para todas as idades. Seja
por prazer, amizade ou solidariedade, público e artista é o que
não falta. E que isso sirva de termômetro para quem ainda não
descobriu que arte e cultura gaúcha, além de ser um bom negócio,
é como chuva fresca no deserto: uma benção na vida de muita
gente.
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