Em algum lugar Nelson Rodrigues disse que as pausas são mais importantes que as palavras. Certo, talvez muita gente boa tenha pensado o silêncio como forma plasmadora do dizer: “o silêncio está prenhe de signos”, conforme a conhecida lição de Octavio e Paz, por exemplo, mas, para o presente propósito, comentar o sensível e bem escrito Rumor da Casa (Rio de Janeiro, 7Letras, 2008), da poeta Telma Scherer, a frase de Nelson nos interessará mais, até porque nem sempre é o silêncio que se manifesta nas pausas de Telma.
Explico-me melhor tomando como exemplo o terceiro poema do livro (p.10):
Um ruído de chaves:
alguém entra na casa.
Conversa quase parada:
há um rumor na casa.
Você ouve?
Cabe esclarecer que esse texto aparece depois do poema-convite da página 7 (Vidraça fechada/do lado de fora/nada.), para que o leitor entre na “casa”, e depois do “silêncio completo” em que se mergulha dentro na página seguinte: (...)o silêncio completo/a ponto de ouvir/o silêncio das lâmpadas,/elétrico.
Voltando à pagina 10, o que temos? Primeiramente, um redeslocamento do olhar (que até então começava a nos conduzir casa adentro), forjado pelo eu-lírico, para a porta de entrada onde enfim um ruído, “um ruído de chaves”, quebra o silêncio, nos forçando, assim, a nos ver outro, não o que já está dentro, imerso em silêncio, mas outro com quem estabelecemos contato por uma espécie de ponte entre o presente e a memória.
Assim, surge a primeira pausa cuja essência não é o silêncio, é o rumor da “conversa quase parada”, atando, no intervalo da suspensão, as pontas do que foi e do que está sendo e reunindo todos sob a vergasta em veludo de Elza, a vó, nas agulhas da tricotaria (p.10):
Vó Elza tricotava
e me ouvia.
Ela fazia peixes
viagens a Marte
toalhas e sins.
Quando faleceu
a vó deixou um prato
sujo
na pia.(...)
Observe-se: no tempo de antes quem fala de fato não é a vó, mas quem fala tempo afora é, de fato, a vó, cujo legado, um prato sujo/na pia, humaniza a sua figura/persona, conferindo-lhe cor, salvando-a de uma fantasmagoria que seria fatal para o livro não fosse, justamente, a habilidade da poeta que parece ter assimilado bem aquela lição da “impureza do branco” legada por Drummond.
Continuemos de mãos dadas com a poeta pelo interior da casa. Ela nos guia, agora (imagino-a um jovem Virgílio não a dar luz ao escuro, mas a irisar o esmaecido...), pelo “assoalho limpo” e quanto mais nós andamos, mais nos tornamos de novo meninos com ela, alcançando “laranjeiras, limoeiros”, “pulando muros” até que...
Na casa vazia
Passou a fome de brilho.
Passou a fome de fruta
Ficou o copo na pia.
Grudou no sulco do chão
O rabo de um rato morto.
Poeira nos travesseiros
Restos de cera queimada.
A sombra da mulher morta
Está sentada na sala.
Agulhas ainda repousam
Num ponto roto da manhã. (p.18)
Até que o tempo, no ritmo marcado pelas pausas, nubla, o rumo seca, vem o silêncio, e o gosto de uma memória doce e macia se torna acre e áspera. A vó deixa de ser vó e passa a ser “mulher”, o assoalho, antes “limpo e macio”, virou “chão” onde “o rabo de um rato morto” insula o leitor supreendido por um silêncio vazio.
A partir daí, nos sentimos abandonados: a menina volta a ser adulta, encontra outros rostos em si, mesmos rostos nos outros, conversa com suas poetas, encontra Vinicius e aquela rosa, encontra a náusea meio-sartre, meio Drummond, desencontra-se, em suma. E volta a falar do silêncio. Do pior silêncio: “Pior é o silêncio/de dentro.” (p.38), ela diz, provavelmente se referindo ao vazio que se esconde no ruído-barulho indistinto no qual nos transformamos: “Nós o ruído constante/de gargalhadas, de copos/garfos e facas nos rostos” (p.42).
Nesse contexto, a casa ressurge – agora em um ritmo “ofegante”, assinalado pela pontuação freqüente e pela alternância de versos curtos e longos – em natais solapados por papais-noéis em pânico, em venenos de rato, no gordo da televisão, no mofo dos armários e nas janelas habitadas por moscas, janelas ainda assim desejadas porque é por elas que se enxerga a paisagem – ainda que deteriorada – familiar: a de fora e a de dentro no vidro em reflexo do imóvel e lépido eu-lírico:
Conheço as reentrâncias desta casa.
Conheço as falhas no carpete, os vidros, os cantos de pó.
(...)
O ruído da chave na porta, depois os passos pesados.
Ela entra.
O som da pasta na mesa, suspiro na geladeira.
(...)
Ela sai.
Fico parado.
Pra que quero conhecer outras paisagens?
A mosca pousou agora mesmo na minha janela. (p.61)
Sim, estar parado é estar imóvel, mas, no plano mental, há como mover-se, voar. Há mesmo esse jeito de ser quem adentra e fica, e de ser quem adentra e sai. Permanece, nesse atamento das partes, um “todo” onde se misturam a moça que regressa a casa, a avó, a neta e o leitor. Os demais visitantes não: estes, inclusive o “senhor ladrão” do sarcástico penúltimo poema do livro (p.62), se foram assim como entraram.
Permanece, ao final, algum som, o rumor, não seu eco:
Penetram-me
palavras
mais que todas
no pulso
Sons
sobre muros
de silêncio
e olho
sons
sobre o mundo
e dentro:
dentro de mim
há o soco
do som. (p.63)
O principal mérito do livro de Telma é que, se ousarmos corrigir Drummond, não há aqui luta contra as palavras mas com as palavras porque elas são o cimento bem tratado com o qual se sustentarão as pernas dessa casa-poema.
Não há luta, portanto; há cumplicidade entre a poeta e as palavras.
Telma Scherer é autora de Rumor da Casa
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