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Música

Sobre o ‘caroço’ da escuta
Felipe Azevedo

Após assistir a uma palestra de dois artistas brasileiros sobre um possível novo gesto de escuta de canções, ambos da nova geração de letristas e cancionistas da MPB, Guilherme Wisnick e Francisco Bosco(1), no projeto Unimúsica (2), constatei que um dos pontos altos que permeou as suas falas foi o uso de duas metáforas: a da fruta que para chegar ao seu caroço é preciso descascá-la e saboreá-la gradualmente; e a da cebola que fatiando, fatiando não se chega num caroço - ela simplesmente se desmancha e toda a experiência de (degustação), escuta fica numa superfície que parece se perpetuar, um invólucro que não termina e que se basta por si só, ou seja, a escuta é um “surfar” simplesmente.

A explicação para tal fenômeno- consenso de ambos os palestrantes- adviria, dentre outras coisas, do tipo de vida que se leva hoje: não há mais tempo para a ritualização da escuta (olhar o encarte do disco, ler as letras, mergulhar na criação do trabalho como ouvinte, etc.). O novo ouvinte que estaria se configurando fruto desta engrenagem de vida seria aquele cuja escuta dá-se apenas na superfície, e que isto, inevitavelmente, irá refletir na forma da canção como a conhecemos hoje: numa relação “concentrada e nevrálgica entre letra, harmonia, ritmo e melodia. Essa outra música é descentrada e difusa”.(3)

Não propondo uma generalização do fenômeno, mas pontuando a sua manifestação, sua ocorrência mesclada a outras experiências de escutas mais subjetivas, este novo ou recente ouvinte seria aquele mais familiarizado ao uso do recurso eletrônico: Ipods, celulares, e que fica na internet “surfando” na rede e com aquela música de fundo que a ele muitas vezes pouco interessa saber quem é o autor, de qual álbum, o que trata a letra, etc.

Dois autores bastante citados por ambos os palestrantes, também foram Walter Benjamin e Roland Barthes – sendo a metáfora da cebola, me parece, deste último.(4) A conexão à idéia cancional partiu de Francisco Bosco, também reforçada por Guilherme Wisnick. Inclusive na fala de Guilherme, sua palestra encerrou-se com a imagem de uma foto produzida em longa exposição onde uma sobreposição de imagens acumuladas no período de um ano dava o acabamento visual, conectando indiscutivelmente esta imagem à da cebola e suas várias cascas, mas sempre privilegiando mais o invólucro e suas impressões do que o conteúdo propriamente.

Ambos os palestrantes não inseriram nas suas falas juízos de valores qualificando ou desqualificando canções que se afinam a este fenômeno, a exemplo as canções do grupo Los Hermanos: uma canção que se basta na superfície, porém com uma vitalidade própria na sua sonoridade, na sua ambiência tímbrica. Apenas pontuaram sua ocorrência, sua manifestação. Talvez este novo ouvinte seja, adaptando um termo usado por Francisco Bosco, um ouvinte Infancional.

Nem tão cebola, nem tão caroço! Entendo que a experiência cancional permite várias formas e tentativas de instigação das escutas. Escutas que do invólucro pode-se enxergar o caroço, por exemplo; e à medida que se vai descascando este, sensibilizando a pele do descasque gradativamente - dure o tempo que durar, o tempo é de cada um - mais este caroço vai clareando, desvanecendo-se das nuvens, da opacidade visual, se delineando.

Uma cebola com um caroço dentro? Quem sabe? O caroço é o processo cancional, o descasque o descobri-lo, o desvanecê-lo, o saborear do processo. Da escuta coletiva pouco se pode dizer além dos estudos que pontuam fenômenos específicos, estudos estes significativos, alertantes e norteadores. Resignificando pontos de escuta e partindo do descasque da canção, podemos chegar ao seu caroço, que pode também revelar-se, por que não, centro de uma outra escuta. Quem sabe? Então, que seja, pois enfim, a escuta não começa e nem termina aqui né?


(1) Francisco Bosco também abordou a experiência do compositor Arnaldo Baptista, por meio da noção lacaniana de real, uma visada, segundo ele não propriamente cancional, mas filosófica e psicanalítica – da canção.

(2) Projeto UNIMÚSICA 2009 – Série Cancionistas música de hoje. Realização da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – UNIDEIA: Seminário Novas idéias sobre a música que reuniu ensaístas e pesquisadores que têm se dedicado de alguma maneira, ao estudo da canção que se cria hoje no Brasil. Os ensaístas convidados foram Carlos Sandroni, Guilherme Wisnick e Francisco Bosco.

(3) Francisco Bosco – entrevista ao Jornal Zero Hora do dia 2/11/2009. Segundo Caderno.

(4) A metáfora da casca de cebola também é familiar a outro autor: Marcelo Dascal e sua teoria semântica a partir da imagem de uma cebola, uma cebola semântica.


05/11/2009

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Comentários:

Fico muito a vontade para partilhar do ponto de vista de Felipe Azevedo sobre o fenômeno da escuta. Sua fala relativizadora acerca das inúmeras e novas possibilidades de escuta, sem atribução de juízo de valor, é o que devemos perseguir como educadores musicais das novas gerações. O problema maior é a falta de coragem e ousadia de percebermos e nos adaptarmos às novas realidades contemporâneas musicais que ora surgem através dos novos aparatos tecnológicos os quais a "velha guarda" persiste em rechaçar por pura falta de conhecimento! Amei a metáfora do surf! Grande síntese, Felipe!
Helena Lopes da Silva, Belo Horizonte MG 11/11/2009 - 12:33
Felipe, Gostei de te encontrar e ler ese maravilhoso texto que nos toca e nos sensibiliza, convidando-nos a parar, escutar e refletir.Gladys Giménez (laly) São Léo, Rs.
Gladys Giménez, São Leopoldo. 09/11/2009 - 17:46
Como todos os textos que escreveste, este é mais um que esclarece e nos faz pensar. Parabéns, Felipe!
Ana Witt, São Leopoldo, RS 05/11/2009 - 22:52
Muito bacana seu texto, boas idéias pra pensar e completamente adaptável para o campo das artes visuais em que atuo. Vou recomendar aos amigos. Parabéns.
Gaby Benedyct, poa/rs 05/11/2009 - 17:22

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  Felipe Azevedo

Felipe Azevedo é compositor e violonista, premiado com 5 prêmios Açorianos, além de prêmios em festivais locais e nacionais. Licenciado em Música (IPA) e Letras (PUC), o músico também estudou Harmonia, Contraponto e Forma e Análise com Fernando Mattos; Harmonia e Improvisação com Cristiano Kotlinski; técnica violonística com Eduardo Castañera e atualmente recebe Orientação Vocal aplicada ao seu trabalho de compositor com Lúcia Passos. Com 03 álbuns lançados Felipe está em fase de finalização de seu novo CD – Tamburilando Canções – Felipe Azevedo – Violão com Voz, prêmio FUNARTE – RJ.

felipaz@terra.com.br
www.felipercussive.blogspot.com
twitter.com/felipazev


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