Dia desses, inadvertidamente, no aeroporto de Congonhas, distrai com uma menina. Vendia artigo de rara procura: livro próprio, feito à custa do tempo sobrado e do dinheiro regateado. Tentava, entre sorrisos, um e outro comprador, alguém de interesse simples, pelo amor da arte tão somente, para que daquela obra fizesse a leitura de sua sublime existência. Livro de poesia livre, emancipada, referiu, referindo-se também. Chegou a mim pelas mesmas palavras e prometeu que era apenas o primeiro, pois adorava escrever, um trejeito compulsivo que lhe assombrava o peito.
Podia evitar a pergunta que me surgiu, mas em saguão de aeroportos tudo é despreparo. Questionei: você lê muito? Ah, surpreendente obviedade! Que lia muito pouco, até. Um e nenhum outro autor, apenas o que lhe caía para bem preencher algumas horas de verão ou talvez de tédio.
Comprei o livro, por comiseração, creio. Para depois lembrar tantos outros que nem leram, nem lêem, nem lerão, mas escrevem. Do meu lado, a bagagem média de um executivo. No assento em frente, a bagagem de mão de uma senhora. E o saguão roçado pelas rodinhas das bagagens mais volumosas, carregadas pela mão daqueles que não desistem delas nem mesmo no check-in.
Pois trata-se de bagagem, meus amigos. Em literatura, bagagem é pouco e menos para quem almeja desconstrução, emancipação ou mesmo a reinauguração de um modo narrativo.
Pouco disso para dizer, de alguns autores de rasa bagagem, que seus leitores são de mesma estirpe. Esse é o problema com a literatura que vinga à custa do pensamento pós-moderno, o pensamento que não crê mais nos fundamentos. Desde Nietzsche estamos em litígio com os fundamentos. E há gente que se acostumou a pensar que ler não é fundamental para escrever (Ler, aqui referido, é buscar com cuidado nas entrelinhas os elementos revigorantes de uma ou outra história – não somente a história em si, mas a competência formal de seu autor).
Nada disso é novidade, eu sei. Por verdade, isso alcança o óbvio. Essa interpretação populesca e vulgar da pós-modernidade, que justifica o comportamento da lei do menor esforço – remetendo o próprio pensar reflexivo à categoria de tempo perdido –, é o que predomina com o mais intenso vigor na atualidade. O que realmente parece estar em jogo é a dissolução da ideia de um significado para a literatura e da ideia de um rumo para a literatura. Literatura tornou-se sinônimo de qualquer texto, e a noção de rumo transformou-se em qualquer lugar. Para quer levar bagagem então?
Enquanto lia o livro daquela menina do aeroporto, pensei o quanto custa manter grandes bagagens. Talvez não tenhamos mais tempo e nem fôlego para carregá-las por aí. “Mas que importa? Eu gosto de escrever, oras!”, disse a menina na minha imaginação. Fechei o livro por precaução e embarquei com a bagagem que eu tinha.
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